- Senhora, eu quero fazer algo para ajudar, mas a senhora PRECISA me dizer o que está errado! – Elise implorava para que Anya se abrisse, mas aparentemente, não estava tendo sucesso.
 
Anya havia chorado até adormecer e quando acordara, o fizera abatida. Ela estava em outro mundo, aérea e distante. Para os de fora, era uma Anya completamente diferente do habitual, uma Anya que não parecia com Anya. Mas por dentro, a coisa era bem diferente.
 
Anya possuía uma habilidade, a Benção de Quíron, que permitia que ela nunca se esquecesse de nada que tivesse aprendido. Era também responsável por Anya reter qualquer conhecimento que quisesse, se lembrando cuidadosamente de cada detalhe. Além de se lembrar das palavras um livro que já tinha lido, ela conseguia se lembrar até mesmo da textura das páginas do mesmo e da iluminação gerada no local para ler.
 
E isto a estava consumindo por dentro.
 
Anya se lembrava com exatidão não apenas do seu primeiro beijo, mas também dos golpes que aplicara em Kaná e de seu sorriso zombeteiro. Lembrava das palavras agressivas dele, carregadas de escárnio e de arrogância, as palavras dele como se ele fosse a coisa mais importante do Santuário.
 
Lembrava com riqueza de detalhes da sua frase, até mesmo da entonação que usara para dizer que Kaná tinha sido o primeiro homem a tocar-lhe os lábios. Kaná, como sempre, não entendera a importância dos seus atos e sequer tinha se dignado a respondê-la.
 
Anya olhou para Elise, que insistia em ficar ao seu lado, fiel e ordeira.  Não sabia do que se tratava a angústia da sua mestra, portanto não sabia como lidar com o problema apropriadamente. Enquanto a serva a olhava com ansiedade, Anya reuniu forças dentro de seu coração e respondeu com um esforço digno de uma amazona de ouro:
 
- Não é nada, Elise. Eu só acordei indisposta hoje e não estou me sentindo muito bem. É só isso.
 
Elise olhou para ela como se não acreditasse em uma só palavra da mestra, mas entendeu que Anya não queria falar a respeito e mesmo com pesar, ela deixou Anya em sua melancolia e saiu para finalmente deixá-la a sós e em paz.
 
Anya se revirou na cama mais algum tempo. Então, súbito, decidiu que não queria mais ficar miserável deste jeito. Deu dois tapas com as duas mãos espalmadas no próprio rosto ao mesmo tempo e lavou a face avermelhada em sua cuba no quarto. Olhou seu reflexo na cuba e novamente se empertigou. Aquilo não era comportamento digno para uma amazona dourada, mas não era mesmo!
 
Resoluta, ela caminhou até o pátio de treinamento de sua própria casa e se muniu de um arco e se encaminhou até os alvos que ali ficavam. Um disparo certeiro a faria se sentir melhor. Ela então ergueu o arco com técnica, retesando sua corda e posicionando a cauda da flecha ao lado da bochecha esquerda. Ela segurou a cauda da flecha mirando diretamente no centro do alvo. Reposicionou a flecha, direcionando sua ponta para o exato ponto entre os círculos concêntricos do alvo. Satisfeita, ela lançou a flecha.
 
Que foi parar direto na parede esquerda do pátio, cravada em uma das colunas de madeira.
 
Anya arqueou a sobrancelha, abriu a boca em um protesto mudo e respirando resignada pelo nariz, armou um segundo tiro.
 
Arco erguido.
 
Corda retesada ao máximo.
 
Flecha na bochecha esquerda.
 
Calcular a mira.
 
Flecha na parede.
 
Anya deu um suspiro curto de impaciência e foi ao terceiro disparo.
 
Arco erguido.
 
Corda retesada ao máximo.
 
Flecha na bochecha esquerda.
 
Calcular a mira.
 
Flecha na parede.
 
Furiosa, ela arremessou o arco no chão com violência, se livrando da aljava. Mais seria possível que aquela história a perturbava tanto que ela tinha perdido sua mira? Ela escorregou pela parede e encarou os alvos, movendo a mão esquerda para o chão, se forma a ter um apoio extra e desceu os olhos para a mão direita que estava solta sobre seus joelhos.
 
E reparou que ela tremia.
 
A mão que usava para firmar a flecha, a mão que conduzia o disparo. Esta mão tremia. Não de forma vívida, não de forma controlada, mas ligeira e intensa, como um pulsar de coração. Como o pulsar do seu coração.
 
Anya se levantou.
 
Entrou diretamente pela casa de Sagitário, e caminhou até chegar à sua armadura. Pendurou a caixa às costas e de um salto, saiu em direção ao Santuário, descendo as casas. Ao passar pelo pátio principal de sua casa, chamou as servas e as instruiu:
 
- Eu estou indo até a casa de Gêmeos falar com o guardião. Se ele por ventura aparecer em minha casa neste meio tempo, peçam que ele aguarde. Eu quero falar com ele.
 
Emilia e Elise, pegas de surpresa pela súbita mudança da mestra, concordaram mudas e se olharam, voltando a olhar para a amazona, estupidificadas.
 
Anya não lhes deu mais atenção. Desceu velozmente em direção à casa de Gêmeos. Já bastava. Não agüentava mais. Tinha que conversar com Kaná tinham que resolver este impasse. Ela não seria mais a mesma se não resolvessem. Ela ainda não sabia qual seria o desfecho, ela não sabia se queria ver o sangue dele em suas mãos ou se queria o corpo dele colado no seu em um lençol quente. E ao ter esses pensamentos, apressou o passo. Já estava começando a delirar por conta do ocorrido.
 
~X~
 
- Explosão Galáctica!
 
O golpe orbitou uma estátua de treino, fazendo com que as massas gravitacionais que o mesmo gerava espatifassem a estátua. Os estilhaços começaram a cair lentamente no chão, até que a gravidade voltou ao normal e eles despencaram com violência.
 
Kaná arfou cansado. Sentou-se em uma pedra e olhou a sua volta. Tudo o que via era um cenário destruído, com cacos de gesso ao seu redor. Usara a Explosão Galáctica de forma controlada oito vezes. Queria se enganar dizendo que estava praticando a precisão de sua técnica, mas não estava. Estava apenas descontando sua frustração em um bloco que não podia revidar. Estava apenas tentando preparar seu coração para o que viria, se preparando para o que teria que fazer.
 
Foi quando sentiu a presença cálida, a sensação morna de um pôr-do-sol depois de um dia de trabalho. Ele a reconheceu chegando antes mesmo que ela chegasse. E ouviu sua voz, ainda sem se virar:
 
- Estou aqui, vim o mais depressa que pude. Você parece estar preocupado com alguma coisa, Kai. O que houve?
 
Sim, era ela. Lenneth, a amazona de Cálice. Kaná se levantou e se voltou para ela. Olhou seu semblante doce, com notas de preocupação. Ele suspirou e se ergueu. Ele sabia o que tinha que fazer.
 
~X~
 
Quando tudo terminou, ele começou a voltar para sua casa no Santuário. Ainda se lembrava da conversa que tinha acabado de ter com Lenneth. Ele explicara o que tinha acontecido, pedira perdão para a amazona, contara como tinha descoberto sobre Anya e que não poderia continuar vivendo com Lenneth a enganando.
 
Kaná tinha ficado surpreso com quão bem Lenneth tinha recebido o término. Ela sorriu pacientemente e lhe redargüiu que já esperava por isto. Ela lhe disse que já havia notado. Ela lhe assegurou que só estava aguardando que ambos percebessem. Ela lhe afirmou que estava feliz por eles.
 
O que deixou o geminiano genuinamente confuso, mas aliviado. Agora tinha outra pendência para resolver.
 
Kaná se empertigou e voltou caminhando pelo Santuário. Passou pelo jardim e observou alguns dos cravos que ali estavam. Decidiu tomar alguns para si, formando um ramalhete em suas mãos. Voltando a caminhar passou pelos portões do Santuário. E suspirando, entrou pela sua casa.
 
- Você demorou, Kai. Podemos conversar?
 
Anya estava parada a sua frente, diante do Saguão principal. Seu coração atrasou uma batida. O que fazer agora?