Anya não dormiu direito naquela noite. Não entendera o que estava sentindo, nem porque seu coração estava aos pulos quando foi se deitar. Deitou-se com uma sensação de entorpecimento, um calor estranho no centro do tórax.
 
E acordou furiosa.
 
Com os primeiros raios do dia, quando a emoção da noite passou, finalmente Anya entendera o que Kaná fizera. Ele tinha lhe pregado uma peça. Tinha se aproveitado dela para deixá-la sem jeito, e ela, tonta, caíra como um patinho! Ele tivera a pachorra de subir sete das doze casas só para deixá-la desesperada e tinha conseguido seu intento! Ah, aquele idiota iria ver só!
 
Com raiva, Anya decidiu tirar aquela história a limpo. Afinal, ele tinha namorada, não podia sair por aí se aproveitando das garotas do santuário, ainda mais se a garota fosse ela! Resoluta de que iria tirar satisfações com Kaná, decidiu descer até a casa de Gêmeos, logo que terminou seu café.
 
Kaná estava neste momento, sentado na escada entre a casa de Gêmeos e de Câncer e pensava na noite anterior. O que dera nele? Por que tinha tocado Anya daquele jeito? Era estranho, mas parecia ter descoberto um lado da amazona que nunca tinha visto. E aqueles lábios... Que toque aveludado e macio! Como ele pudera ignorá-la por tanto tempo? Kaná soltou um riso pelo nariz e voltou seu olhar saudoso e tranqüilo, em direção à Casa de Sagitário. E assim ficou, rindo e olhando para a direção da casa.
 
Até que a sola de um pé entrou no caminho de sua visão, obstruindo-a e fazendo com que o Cavaleiro visse o céu e as escadas repetidas vezes. Anya, que estivera descendo as escadas para conversar com o atrevido o viu olhando em direção a ela e rindo.
 
Aquilo foi à gota d’água! Tomada por um súbito acesso de fúria, Anya venceu o restante da distância com um salto e acertou Kaná no rosto em cheio. O geminiano que esperava ver qualquer coisa menos aquilo, se surpreendeu e caiu, rolando os degraus até sua casa, caindo sentado encostado em uma pilastra.
 
Anya não segurou carinhosamente os pulsos de Kaná, como ele fizera com ela na noite anterior. Ela aplicou-lhe uma gravata, prensando seu pescoço entre seus braços e grasnando de raiva:
 
- Muito bem, Kai! O que diabos você estava tentando fazer ontem, seu imbecil? Por que você me... – Ela se interrompeu um pouco envergonhada, mas logo continuou. – Por que você fez aquilo, seu retardado!? Você tem namorada! Será que perdeu a noção, seu tonto? – E continuava apertando o pescoço dele.
 
Pego de surpresa, Kaná não reagiu desta vez. Pelo menos não fisicamente. Na verdade, ele fora praticamente nocauteado com o golpe de Anya, e havia o adendo de que não queria feri-la. Ficou preso nos braços dela, e então respondeu:
 
- Eu adoraria responder, sério, de verdade... Mas para isso, preciso estar tipo, respirando sabe, Anya...? – Ele disse entrecortadamente, visto que ela não afrouxara a pressão.
 
Anya então percebeu que fora longe demais no seu ataque de fúria. Longe demais até mesmo para ela e seu nível de amizade com Kaná. E quando percebeu isto, ela afrouxou os braços, fazendo com que o cavaleiro tossisse e segurasse a garganta, respirando fundo para retomar o fôlego arrancado de si.
 
Foi então que ele reagiu novamente. Kaná ergueu os olhos e um misto de emoções tomou conta de si. Raiva, por ter sido atacado gratuitamente, confusão pela noite anterior, alegria por Anya estar ali, ao lado dele. Seu coração parecia fora de sintonia com seu corpo, com seu cérebro, com seu espírito. Ele não sabia o que fazer.
 
Então, fez o que fazia de melhor.
 
Irritar Anya.
 
Kaná se levantou e disse, com um sorriso tênue nos lábios:
 
- Você não notou ainda, baixota? Eu tenho reparado em uma coisa... Você deve ser assim tão irritadinha por que não tem experiências, não é? Então eu decidi te dar uma inesquecível! Fala sério, você adorou, não é?
 
Ele completou com um riso alto, coçando o nariz como que para bazofiar da moça.
 
E um frio gigantesco tomou conta de seu estômago quando olhou para Anya. Ela não parecia ter gostado da brincadeira, mas não estava brava.
 
Ela estava séria.
 
E parecia um pouco triste.
 
- Foi meu primeiro beijo, Kai... – A amazona respondeu ao gracejo com esta frase. Sua voz estava fria como gelo e baixa a quase um sussurro. A dor permeava seus sentimentos, como se cordas de aço apertassem o coração de Anya, como se tivesse sido deixada no frio da neve.
 
E para ela, o que mais doía era o fato de que ele desprezava o que tinha significado isto. Ela estava ainda mais nervosa, mas a raiva não se acentuava mais. Anya suspirou pesadamente e volveu as costas, deixando Kaná parado em sua casa sem reação.
 
Anya correu para o alto, subindo as escadas para sua casa, segurando as lágrimas que ameaçavam descer. Desta vez, mais do que nunca, Kaná a magoara profundamente. E o que mais doía, era que ela não entendia o porquê aquela declaração ter doído tanto.
 
Tal qual uma adolescente, com o coração aos pulos, Anya correu até suas dependências e se lançou a sua cama, chorando copiosamente. Ali, apenas a estátua de Quíron com sua flecha apontada ao céu, ouviu seu pranto.
 
~X~
 
As coisas têm sempre dois lados. E o que Kai Nairn tinha dito também tinha.
 
Anya nunca tinha tido um relacionamento em sua vida, e era por isto que ficara tão brava. Mas tinha sido um momento inesquecível, e inesquecível para ele também.
 
Mas ele tinha dito de forma que a moça interpretasse como um gracejo, na intenção de que ela novamente perdesse a compostura. O que realmente acontecera, mas não como Kaná previra.
 
Ele enterrou as mãos no crânio e ficou em silêncio, com uma expressão de total inconformidade. Não queria ter ferido a amazona, não queria que ela ficasse triste.
 
Por que era tão difícil para ele lidar com seus sentimentos? Por que não conseguia admitir de uma vez como gostava dela? E por que a deixara partir, triste daquele jeito? Ao sentir isto, ele mesmo ficou com seus olhos carregados de pranto, mas não o deixou cair. Ele decidiu resolver outras pendências que deveriam ser resolvidas naquele momento. E assim, secando o pranto que não descera, ele enveredou pela saída de sua casa, saindo das doze casas.