- Agave... - eu repeti devagar, para gravar o nome com cuidado. Já conhecia tequila, mas não sabia que se podia fazer outra coisa com a mesma matéria prima.
Terminei meu segundo copo em mais um gole. Mordisquei uma lasca do gengibre, enquanto servia nossa terceira dose.
- Você já imaginou sua vida, caso não fosse parar no Santuário? - eu perguntei do nada, olhando para as pessoas na rua.
Pessoas para as quais o "fim do mundo" era apenas uma expressão, e deuses não mais do que amigos imaginários coletivos.
Que não podiam erguer muito mais do que o próprio peso, e que admiravam atletas olímpicos. Cujas tragédias diárias oscilavam entre perder o último trem e procurar o amor de suas vidas.
Cada mente, um mundo,um objetivo. Nada como a unidade do santuário, o senso de coletivo e dever.
Pessoas que podiam se preocupar apenas com elas mesmas e o que estava à seu alcance. E não havia nada de errado nisso.
Hank tomou a segunda dose de bebida rapidamente, comendo mais um pouco das lascas de gengibre e logo já estava pronto para a terceira dose, que ele tomou a goles curtos.
Ele ouviu a pergunta dela e suspirou, tomando mais um gole antes de responder:
- Eu nunca pensei a respeito. Mas talvez eu fosse algum tipo de ativista que lutasse pela minha tribo. Mas não sei na verdade. E você, já pensou a respeito?
Hank olhou para ela e depois a volta, aguardando uma coisa resposta, mas ele mesmo parecia pensar no que ela tinha dito
Eu torci o canto do lábio num sorriso, sentindo o gosto do sake misturado ao ardor do gengibre.
- É engraçado imaginar você abraçando uma árvore... eu sabia que não era bem disso que ela estava falando, mas era engraçado assim mesmo.
Agora... Se eu já tinha pensado a respeito... Tomei mais um gole do sake. Sim, eu já tinha pensado. Agora... Além do santuário, o que mais não poderia ter acontecido na minha vida?
Tomei outro gole pensativo. E antes de afastar o copo da boca, virei o restante do conteúdo, servindo minha quarta dose, mesmo que Hank não tivesse terminado a dele.
- Então.. . Apesar de eu as vezes me perguntar isso, nunca cheguei nunca resposta muito plausível. Se minha cidade nunca tivesse sido atacada, provavelmente eu estaria hoje casada com o filho do padeiro e iniciando uma sequência de 5 filhos. - eu ri daquele futuro fantasioso. Mas peguei ar, revisando as possibilidades - Mas se a única diferença fosse o Santuário e o cosmo... acho que na melhor das hipóteses, eu seria uma criminosa. Um desses piratas do asfalto, ou uma golpista.
Tomei mais um gole um pouco maior do que deveria, considerando a quantidade que já havíamos bebido, mas eu podia confiar na minha resistência.
- Mas considerando as estatísticas e probabilidades do mundo real, se o cosmo não tivesse me mantido viva e me levado até Sunao, vamos encarar, eu estaria morta em um mês. - mesmo que de forma pouco perceptível, eu falei a última parte um pouco mais rápido do que o normal.
Cocei o nariz com as costas da mão, disfarçando o incômodo. Bom, era eu quem tinha começado o assunto, não havia sentido ficar chateada. Terminei meu saque e servi o quinto copo.
- Mas é então? Abraçador de árvores ou carreira política? eu voltei o assunto para Hank. O futuro hipotético dele parecia mais divertido Diga-me congressista Twan, qual seria sua agenda?
Hank olhou impressionado com a velocidade que a moça secava copos de saquê, se atendo a beber apenas o que lhe havia sido servido. Ele ouviu as possibilidades de futuro dela e riu divertido, ao pensar em Lygia com um avental e lenço na cabeça e disse a ela:
- Não consigo imaginar você como mãe, mas você provavelmente seria uma das boas. Talvez melhor como criminosa... - Ele permitiu um comentário mais maldoso atípico de si. Então ouviu atentamente a última parte e a consolou, acariciando as costas sua mão com a dele. E então respondeu a última pergunta, virando seu copo:
- Político provavelmente. Ativista que entrega panfletos em empresas para eles ajudarem as reservas. Coisas assim... Ele completou sorrindo.
Ao ver Hank pousar o copo vazio na mesa, aproveitei para recuperar minha mão que ele acariciava, alcançando a garrafa
- O senhor está dos copos atrás de mim... - eu observei, servindo mais uma dose para ele, e continuei nossos cenários hipotéticos - Eu não sou exatamente um exemplo de material materno. Provavelmente causaria um incêndio tentando fazer o almoço. - eu ri junto com ele - Mas concordo; eu seria uma excelente golpista. Provavelmente viveria em mansões, enganando um trouxa após o outro
Fiz uma cara misteriosa, que não consegui manter por muito tempo antes de cair na risada.
- Distribuir panfletos... Nada de política, eleições, agir pelas sombras... Você realmente é muito bonzinho... - baguncei o cabelo dele, convidando-o a mais uma rodada - O mundo precisa de mais gente assim
Desafiadoramente, Hank se muniu do seu copo e do de Lygia, emborcando um após o outro ao ouvir a reclamação dela, apenas para encher os copos de novo e dizer:
- Pronto, estamos quites agora. - Ele sorriu depois dessas duas bebidas e Lygia notou uma beleza inocente e provocante no seu sorriso. Ele então acompanhou a moça nas suas hipóteses com a cabeça, até que ela riu novamente e o acariciou. Hank também riu timidamente ao elogio, e respondeu como se não fosse nada: - Só fui treinado para ser assim. Fazer o que é certo e proteger o próximo é coisa de xamã. Lembra? Velhinhos e sábios! - Ele riu de novo lembrando da piada e completou - O mundo precisa de mais gente como você, isso sim. Se o mundo tivesse mais coisas lindas assim, daria mais gosto se lutar por ele.
Bati palmas ao vê-lo virar os dois copos seguidos, rindo um pouco alto. Depois ri novamente ante a imagem de um Hank velhinho, enrugado, com um cocá na cabeça e fumando um longo cachimbo. Mais estereotipado impossível. Mas aquele sorriso não combinava com aquela imagem.
Congelei no meio do movimento de pegar meu sexto copo. Não... Hank havia tomado minha dose anterior, então ainda era o quinto...?
A verdade é que eu perdera a conta depois do último comentário dele, e podia sentir minhas bochechas esquentarem. Eu não havia bebido tanto a ponto de deixar minha habilidade fora de controle, certo?
Olhei de volta para ele, procurando algum rubor alcoólico, mas era difícil dizer naquele pele morena.
Apertei os olhos, e depois me toquei que o estava encarando a sólidos 30 segundos sem dizer nada. E senti minhas bochechas esquentarem mais. Ok, aquilo sim devia ser culpa do álcool. Tudo aquilo.
Graças à Athena o horário de Tokyo era o mesmo de Rodório e chegaríamos à noite.
Olhei para os copos cheios e a garrafa vazia.
Seja o que Athena quiser...
- O mundo já tem muita gente como eu. Por isso que está essa bagunça - eu observei, desviando do elogio ébrio - Você está bêbado. - eu declarei, rindo e bebendo meu último copo. Toda a rua girou ao meu redor e eu repensei sobre minhas escolhas por um segundo - Isso me declara campeã da noite. - não que houvesse sido estabelecida uma competição, mas eu declarei assim mesmo, o mais sobriamente possível, enquanto cobria o copo cheio de Hank com o meu, equilibrando-o de ponta cabeça sobre o outro, numa tentativa de impedi-lo de tomar a última dose.
- Voltemos ao mundo real? - eu convidei, enquanto buscava minha carteira para pagar nossa última travessura do dia.
Hank manteve e sustentou o olhar de Lygia, sem dizer nada também, apenas sorrindo e rindo quando ela retribuía seus comentários. Estavam altos, essa era a verdade. Hank se levantou, o dever chamando de algum lugar do cérebro. Apesar de não estar tão bêbado quanto Lygia pensava, ele estava apreciando a companhia da amazona. Ele apenas sorriu ante a desviada perceptível do elogio e antes de concluir, ele se defendeu:
- Não, não estou. Você é quem está aí rindo pelos cantos. - Hank pegou o copo por cima do dele e dividiu a última dose entre os dois copos, servindo a metade de sua dose para Lygia. E então, ele completou: - Para ser campeã, é preciso que não sobrem doses na competição. Vamos lá, beba essa. Você ainda vai estar meia dose a frente e vai ganhar de qualquer jeito. Ou eu bebo a minha e passo a sua frente. - Hank realmente bebeu seu último copo de um trago e esperou que Lygia secasse o seu antes de sair e pagar. Ele parecia bem o bastante para calcular as doses, o que indicava que talvez ele não estivesse tão bêbado assim. Talvez estivesse no perigoso limiar do álcool, onde as pessoas se tornam desinibidas. E isso, ora, era exatamente ISSO que Lygia temia. Pelos menos enquanto estivesse em plena consciência.
Eu ergui minha sobrancelha de forma ofendida. Quem ele achava que estava enganando? No máximo, ele conseguiria um empate.
Olhei o meio copo durante de mim, e refleti um pouco sobre a situação.
Não seria aquilo que iria mudar alguma coisa. Eu me levantei sem dificuldades, mas definitivamente sentido a cabeça leve
- Pois pode então preparar meu troféu. - eu declarei com coragem virando a meia dose de uma só vez, já de pé. A rua girou mais uma vez, o que me fez fazer uma carta feia, enquanto engolia o sake.
Deixei o valor sobre a mesa, acenando a despedida para o senhorzinho que nos serviu. Peguei minha parte das sacolas e respirei fundo.
Só mais um trem, uma floresta e um portal dimensional até o lar-doce-lar.
Por um segundo, desejei ser uma lemuriana e poder teleportar.
Pelo menos, eu poderia parar à noite por tokyo. Não que a cidade ficasse mais tranquila, mas era definitivamente diferente.
- Alguma dúvida sobre minha vitória agora? - eu provoquei, esperando Hank ficar pronto também.
Hank se levantou, apanhando as suas sacolas também e caminhou ao lado de Lygia, já devidamente pronto. Ele sorriu de forma dócil e continuar caminhar um pouco, antes de responder:
- E o que você quer de troféu? Sem dúvida foi uma vitória, por um fio de cabelo, mas foi.
Hank então se virou para ela e disse: - Mas achei que você tinha dito que iríamos nos divertir em Tóquio. Realmente a comida é excelente, mas isso é tudo que você conhece por aqui? Ele fez uma pausa e confessou: - Admito que estou aliviado que o passeio foi comum. Eu achei que você iria me levar para uma noitada e me preocupei ligeiramente. Mas eu devia saber que você não é este tipo de pessoa. - Hank falou de forma tranquila e voltou a contemplar o céu de Tóquio, sorrindo ligeiramente. Ele realmente gostava de estrelas.
Enquanto eu pensava sobre o que seria um bom troféu, Hank continuou a falar, sem sentir o aperto da corda que ele estava enrolando no próprio pescoço.
Eu parei de andar, ficando dois passos para trás. A audácia!!
Medi Hank de cima abaixo e depois de baixo acima. Inclinei a cabeça ligeiramente para o lado, sorrindo de forma quase condescendente.
- Se eu te levasse para uma noitada, teria de explicar ao sunao por que o cavaleiro de bronze estava sendo carregado para a missão. - eu falei num tom de quem enumerava motivos - E o que faríamos com todas essas sacolas? - eu ergui a mão, mostrando o volume e apontando para o que ele carregava também - E depois, eu lhe prometi diversão; não queria lhe torturar. - eu dei de ombros, sincera. Não conseguia imaginar Hank num Club.
Me aproximei o suficiente para que ele pudesse ver o próprio reflexo nos meus olhos, colocando um dedo contra o peito dele
- Se você já foi quase devorado na rua, em plena luz do dia... O que seria de pobre filhote contra as criaturas da noite? - dizendo isso, mordi o ar logo diante dele, batendo os dentes num estalo e empurrei ele para trás com aquele um dedo, abrindo passagem para mim, rindo enquanto voltava a caminhar.
- Chara com certeza não lhe treinou o suficiente para isso - eu disse em meio ao riso - Mas se você estiver mesmo curioso, eu lhe trago quando voltarmos da missão.
Hank fechou o semblante quando ela citou Sunao e também parou de andar. Logo em seguida, ela se aproximou e ele ficou perplexo com o dedo em seu peito. Quando ela mordeu o ar, ele recuou o rosto por reflexo, mas fechou ainda mais o semblante quando foi chamado de filhote. Por fim, Lygia falou de Chara. Hank abaixou a cabeça, ouviu em silêncio os últimos argumentos e a deixou passar. O semblante de Hank estava tenso, carregado, mas ele obediente respondeu:
- Você está certa, Lygia. Eu só relembrei você, pois você parecia empolgada. Mas vamos voltar, já está tarde.
Ele só emparelhou com ela e seguiu em frente em um silêncio estendido e o pior: Um silêncio obediente. Um silêncio de um soldado de patente baixa sob um comando.
Surpresa.
Raiva.
Desgosto.
Mesmo com o cosmo relaxado, eu não consegui não sentir os três sentimentos inusitados que me atravessaram em sequência.
Girei sobre o corpo, procurando possíveis ameaças ao nosso redor, a respiração acelerando por um segundo. Mas só precisei vislumbrar a expressão de Hank, para perceber que a ameaça não era externa.
Ah ótimo. O que eu tinha feito agora? Será que ele havia se irritado de novo por eu ter trazido Chara na conversa? O que eu podia fazer? Eu realmente não gostava daquele cão chato!
E bem ali estava um dos principais motivos por eu não gostar dele; o jeito que Hank ficava as vezes.
Essa atitude nula, de cachorro treinado. O sake misturado ao susto me atingiu com força, e a discussão que minha cabeça antecipava de repente se tornou exaustiva.
Ótimo... Bela maneira de estragar o dia, Lígia... Eu resmunguei para mim mesma entre pensamentos.
Certo eu suspirei, como que dando de ombros. Agora teria que sentir aquele "muro" durante todo o caminho de volta, e eu não havia bebido o suficiente para aquilo.
De repente trem, floresta e portal dimensional se tornaram um trajeto longo demais...
Será que eu conseguiria pegar tudo da mão dele e ir para a casa na floresta?
Mas a chance daquilo o irritar ainda mais era maior que 100%.
Meu salto batendo contra o asfalto ecoava de forma endurdecedora em meus ouvidos, e eu desejei poder correr o mais rápido possível para chegar logo.
Deliberadamente, diminui o tamanho dos meus passos, para que eu ficasse para trás, mesmo que um pouco.
Hank seguiu em silêncio, mantendo uma postura obediente. Quando Lygia reduziu os passos, ele simplesmente prosseguiu, sem dar atenção a manobra dela. Ele passou a mão sobre os olhos, com uma expressão cansada. Ele não queria mais conversar com Lygia.
- Eu não sabia que você era tão focada. Achei que tínhamos um tempo de folga antes da missão. Mas tudo bem, você precisa evocar os dois prateados em toda conversa. Deixe pra lá, vamos ao Santuário de uma vez.
Agora eu havia parado de andar de vez. Eu já havia sido chamada de muita, mas muita coisa na vida. E era a primeira vez que alguém conseguia fazer "focada" soar como uma crítica.
E qual a diferença de quem eu colocava numa conversa? Ele realmente achava que eu estaria preocupada em explicar qualquer coisa para Sunao?
Bom, se eu estava incomodada em chateá-lo antes, eu não tinha essa preocupação mais.
- Sim, tínhamos um tempo de folga. Desculpe por tentar faze-lo ser agradável para você. - eu reclamei com uma pontada de acusação na voz - Agora se eu te irritei, desculpe. Pode entrar na fila com todos os outros que acham o mesmo. - não usar minha habilidade para transferir toda minha frustração para cima de Hank estava sendo realmente difícil. Venci a distância que nos separava em menos passos do que seria esperado para alguém de salto alto, segurando as sacolas que Hank carregava - Não se preocupe que eu não tomo mais de sua paciência. Você disse que conhecia a cidade, então consegue voltar sozinho. Pode deixar que a srta. Focada aqui termina o missão
Dizendo isso, fiz um movimento brusco, na esperança de faze-lo soltar os pacotes.
Eu só queria sair dali.
Hank ouviu as críticas e se virou para revidar a discussão, mas quando ela puxou os pacotes, ele reteve a mão firme e a segurou pelos ombros com a outra mão e então a puxou para olhar para ele:
- Qual é o seu problema, Lygia? VOCÊ prometeu que essa noite seria nossa! VOCÊ disse que não falaria do Chara! E agora EU sou o culpado por aborrecer você! Tudo que eu queria era um tempo com você!
Hank desabafou ainda segurando o ombro dela e a encarando com firmeza. Lygia sentia a vibração. Algo estranho, mas familiar.
Eu quase perdi o equilíbrio com a resistência de Hank, mas cravei o pé firme no chão. Eu podia sentir minha paciência chegando ao limite, e só então eu percebi como aquele dia fora emocionalmente desgastante. Desde quando andar com Hank ficara tão complicado?
Mas foi quando ele me puxou pelos ombros que eu tive que trancar o maxilar para não revidar numa escala desproporcional. E logicamente ele não me fez o favor de se manter em silêncio.
- Foi. Uma. Brin-ca-dei-ra. - eu falei entre dentes. Agora algo vibrava no fundo do meu crânio, com um zumbido que começava a preencher meus ouvidos. Aquela noite poderia ficar pior? - Desculpe por ofender. Não sabia que você era tão sensível. - meu tom não era de desculpas. Eu estava a um passo de procurar confusão. Respirei fundo e puxei as sacolas de novo - Você quer fazer o favor de soltar isso?
- Já chega. - Hank deu outro tranco nas sacolas. Ele resmungou e disse - Eu não sou sensível, não sou bonzinho, e muito menos un filhote! - Hank encarou Lygia firme e disse, completando. - Qual é o seu problema? Está apaixonada pelo Chara? Eu não LIGO a mínima para ele, mas você não o esquece! Eu não vou soltar as sacolas! Se quer ir embora, vá com o que está na sua mão! Sua... Sua... - Ele se calou. E se aproximou dela. - Por que você é tão linda? Por que é tão difícil me aborrecer com você?
Ergui a sobrancelha, ofendida. Certo, se Hank queria confusão, ele havia acabado de conseguir. Abri a boca para dar o ultimato final, ou ele teria que lidar com a Miragem do Santuário, mas som algum saiu da minha boca aberta, pois, lógico, Hank ainda não havia decidido ficar em silêncio.
Fechei a boca lentamente, recuando um passo. Soltei as sacolas que eu tentava arrancar de Hank, recuperando o braço até então estendido para junto do meu corpo. Quando foi?
Em que ocasião ele havia caído numa Miragem? Eu tinha certeza de que nunca usara aquilo contra ele, nem sequer em simulação. Será que os sentidos dele eram tão aguçados a ponto de receber o impacto por apenas estar ao meu lado quando eu usei aquilo? Mas quando foi?!
Respirei fundo uma vez, organizando minha cabeça. Eu não conseguia precisar o evento.
- Você é bom. - eu havia retirado o diminutivo de forma consciente - E é por isso que nunca se aborrece com ninguém. Não tem nada a ver com minha aparência. - eu recuei mais um passo, o salto estalando muito mais alto do que eu gostaria - Minha fachada é o que eu ponho para todos verem, é minha vantagem. Mas ela é só uma miragem, como todo o resto.
Tão, TÃO, cansada. Eu só queria ir para qualquer lugar, menos ali.
- Por mim ótimo. Faça como quiser. Deixe isso na minha casa; você consegue entrar sozinho. Keeva está lá de qualquer maneira
Dei mais dois passos para trás, mantendo Hank em meu campo de visão, até achar que estava a uma distância segura para dar as costas e começar a andar em qualquer outra direção que não fosse a mesma que ele.
Ele suspira cansado e solta as sacolas e então, escuta ela falar. Ele se irrita então mas não briga. Ele simplesmente puxa Lygia de volta e diz:
- Eu não estou falando da sua aparência. Sua gata assustada, eu gosto de você por causa do seu nariz franzido, sua franja sempre desalinhada e seus olhos de cor comum. Eu gosto de você como pessoa. Não tem nada a ver com sua aparência. Eu já gostava de você antes de você ter formas. Eu gostava de você antes de aprender a se maquiar. Eu gostava de você mesmo quando você não gostava. - Ele suspira e vira ela para ele. - Entenda, eu gosto de você.
Ele suspira novamente e solta o braço dela, avançando na direção oposta.
Como era mesma o som?
Algo como uma bolha que rompe a calma superfície de um lago. Nada muito chamativo, mas suficiente para te fazer olhar na direção do que você poderia ter certeza que era uma superfície lisa e sem surpresas.
Foi esse som que ecoou em meus ouvidos, e esse som foi o que rompeu a tênue tensão superficial do meu lago que estava sendo represado com tanto custo.
Ótimo.
Eu não me mexi, eu não fiz som algum. Eu apenas inspirei em choque, completamente pega de surpresa - algo imperdoável para uma espiã. E essa surpresa foi suficiente para lançar uma onda explosiva que varreu meu entorno num raio de 10 abençoadamente vazios metros. Vazios a não ser por Hank.
Meu cosmos liberado como uma Tsunami não era destrutivo, nem sequer tinha propriedades físicas. Mas a onda de medo, culpa, dúvida, incredulidade, choque, negação e toda sorte de sentimentos "agradáveis" atingiriam Hank com força suficiente para faze-lo cair no chão.
- Aaaaaaaaaaagh!
Hank foi lançado no chão pego de surpresa pelo ataque. Ele tentou ficar em pé, mas sentia toda a potência do turbilhão de emoções de Lygia. Ele se levantou com dificuldade, olhando para ela. As sacolas voaram, mas caíram próximas a ele com um baque leve. Ele então se ergueu, ainda trêmulo e olhou para ela estupefato. Sem reação, mas assustado.
Eu cobri minha boca com a mão livre, assustada. "Puxei" aquela onda de volta para mim, trancando-a o mais fundo que podia dentro da minha mente.
- desculpe
Eu murmurei, sem saber se ele poderia ouvir. As sacolas estavam no chão e Hank chocado o suficiente. Confesso que fazia algum tempo que eu havia parado de pensar.
Corri o mais rápido que podia.
Peguei as coisas no chão rapidamente, repetindo naquele tom de voz baixo
- Desculpe, desculpe, desculpe...
E corri dali. Eu só precisava chegar em casa. Não importava se eu ia correr até Rodorio.
Eu precisava chegar em casa.
- Lygia...
Hank tentou detê-la, mas foi tarde. Ela recolheu as sacolas e saiu correndo. Ele ficou ali, para trás, enquanto ela se afastava rapidamente.
Não sei bem como cheguei até ali, mas a próxima coisa que eu me vi fazendo foi abrindo a porta da minha casa, já em Rodório.
Senti uma pressão na lateral de minha perna, e encontrei a descomunal cabeça de Keeva me empurrando de leve, como se perguntasse algo. Talvez onde estava o companheiro?
- As coisas desandaram um pouco, amigo... - o que era, no mínimo, um eufemismo para o que havia acontecido - Pode esperar aqui, se quiser
Eu deixei a porta entre-aberta. Assim o lobo poderia entrar e sair quando quisesse.
Pacientemente, agrupei todos os disfarces, para agilizar a distribuição no dia seguinte.
Isso feito, eu só precisava terminar de me acalmar.
Minha casa era compacta e prática, mas isso não se aplicava ao banheiro.
Uma banheira grande o suficiente para me submergir por completo dominava o cômodo.
Abri a água fria em vazão máxima, e só o som da corrente e o frescor que enchiam o banheiro já começavam a fazer sua mágica. Me livrei de minhas roupas, sentindo pela primeira vez em muito tempo meus pés cansados de andar de salto alto.
Mal toquei a água com o ponta dos pés e pude sentir todo meu corpo arrepiar de frio.
Aquilo era bom.
Submergi lentamente, sentindo pontadas na pele e a respiração dificultada pelo frio.
Uma vez com apenas a cabeça de fora, me concentrei em parar de tremer.
Fechei os olhos e me concentrei em respirar. Aquilo iria acalmar a explosão de mais cedo.
Quando Lygia sentia-se relaxando, subitamente ela sentiu uma coisa quente e úmida em seu rosto. Era Keeva, que preocupado, invadira o banheiro e dava uma lambida leve no rosto da moça.