Eu girava no mesmo lugar já fazia algum tempo. Contra todos os meus princípios, eu estava de moletom, do lado de fora, onde pessoas podiam de fato me ver.
Suspirei e dei de ombros diante daquela preocupação. Era a coisa mais fácil de vestir, considerando a quantidade de bandagens enroladas no meu corpo, e ninguém ia me ver. Não àquela hora, não naquele lugar.
Encarei novamente o prédio da enfermaria, que se encontrava a meros 100 metros adiante.
- Quais as chances de ele estar dormindo? - eu me perguntei, mas novamente dei de ombros. Eu só esperava que ele estivesse dormindo.
Contando com essa hipótese, eu comecei a diminuir os 100 metros.
O silêncio imperava naquela região no avançado da noite, de forma que meus passos, mesmo leves, ecoavam nos meus ouvidos. Naquela mesma manhã, o local estava vazio, a não ser por nós, que havíamos acabado de chegar da desastrosa missão. Eu apostava na chance de que ela continuaria vazia.
Toquei a porta, congelando no lugar. Fechei os olhos por um segundo, tentando sentir de haviam outros tipos de emoções lá dentro, qualquer coisa que anunciasse outras pessoas.
Ou talvez eu só estivesse tomando coragem.
- Ok, isso é ridículo. - eu briguei comigo mesma, abrindo a porta o mais suavemente possível.
A enfermaria estava como sempre, vazia e silenciosa. Não havia a necessidade de policiamento ou de vigilância nas dependências do Santuário, de modo que Lygia não encontrou ninguém próximo dela até a área dos leitos. Thalia, a amazona de cálice estava descansando em um dos leitos e ela a viu, mas como se já soubesse o porquê da amazona estar ali, ela sequer se mexeu. Apenas indicou com os dois dedos da mão direita uma direção, que Lygia inferiu se tratar do lugar em que Hank estava descansando.
Ao se aproximar um pouco mais, ela ouviu a respiração forte de Keeva, mesclada com sons de arfo. O lobo parecia estar acordado, mas o mesmo não podia ser dito de seu dono.
Ao finalmente chegar próxima do leito, ela viu Hank deitado de costas na cama, com seu rosto voltado para cima. Ele parecia dormir um sono profundo, e seus olhos estavam cobertos por uma faixa, o que deixava o apache com um ar doente. O seu lobo havia sido deixado em uma maca no chão, ao seu lado. Tão logo a amazona de pavão se aproximou, Keeva rosnou e exibiu os dentes, coisa que nunca tinha feito para a amazona. O lobo parecia muito mais um animal silvestre assustador agora do que um cãozinho, como ela sempre se acostumara a ver.
Assenti de leve para Thalia, mas ela parecia cansada o suficiente para não se importar comigo, de forma que apenas a deixei descansar.
Continuei na direção que ela apontou e senti meu coração pular uma batida; como que as coisas tinham chegado naquele ponto?
E então, as más notícias não paravam de chegar. Antes mesmo de ouvir o rosnar, eu já tinha sentido a ameaça vindo de Keeva.
De forma que assim que ele começou a rosnar, eu já estava de joelhos, com a cabeça na altura da dele, um dos braços estendidos para frente, mas sem tocá-lo.
- Shhh, calma garoto. Não vamos acordar ele… - eu sussurrei. Não queria testar minha sorte na profundidade do sono de Hank - Você está bem? Não está machucado? - eu perguntei realmente preocupada.
Eu mantinha meu braço erguido, com a palma voltada para cima. A manga do meu casaco puxava para cima, mostrando o começo das bandagens no meu braço. Não era hora de ter pressa.
Keeva ainda parecia desconfiado com Lygia, mas estava bem. Os ferimentos do lobo não pareciam mais do que superficiais, mas ele seguia rosnando, realmente como um cão de guarda protegendo seu dono. Keeva parecia um misto de chateado, irritado e desconfiado, péssimas combinações para um animal. Se Lygia não fizesse algo, talvez o lobo a atacasse, o que seria, no mínimo, problemático.
Não. Ele não estava nada feliz. Mas parecia estar bem, ao menos, fisicamente. Agora vamos ser francos, eu era uma ameaça que havia posto o irmão dele naquela cama.
Tudo bem que ele estava naquele estado por culpa dele, mas eu não ia conseguir discutir aquele tipo de nuance com Keeva, muito menos naquela situação. Eu suspirei, cansada. No fundo, eu também me sentia culpada. Eu podia não ter desferido os golpes que o deixaram naquele estado, mas eu era o motivo para ele ter perdido a calma daquele jeito.
- Eu sei. Eu também não estou feliz com o que aconteceu. - eu sussurrei, esticando o braço mais um pouco, como se fosse acariciar a lateral da cabeça de Keeva, mas parei ainda a uma distância não ameaçadora - Eu preferia que fosse eu ali naquela cama… Ou melhor, que a gente nunca tivesse ido para aquela arena... - eu suspirei, deixando transparecer a culpa, preocupação e o leve toque de tristeza que me fizeram ir até àquela enfermaria.
O lobo recuou a cabeça, mas não atacou. Ainda parecia lembrar quem era a menina, ainda parecia lembrar algumas coisas. Ele rosnou de leve e se afastou, rodeando a cama e se deitando do outro lado da mesma. Hank não se moveu, mas Keeva não parou de rosnar e nem de mostrar os dentes. Apesar de ter recuado, não parecia ter ainda perdoado a amazona, muito embora seu comportamento tivesse aberto uma brecha para o acesso ao leito onde o bronzeado descansava.
Deixei um suspiro aliviado escapar por entre meus lábios ao ver Keeva se afastar. Me levantei, me aproximando da maca, parando ao lado de Hank, cujo peito subia e descia lentamente.
Passei um dedo sobre a parte superior da venda, roçando levemente contra a testa dele, como se tirasse o cabelo dele de cima de seu rosto. Eu senti um aperto no peito que de repente tornou respirar algo muito difícil.
- Idio... ta! - eu cobri a boca com a outra mão, abafando um soluço e acalmando minha respiração novamente - Quando você vai parar de comprar brigas que não pode ganhar? Quando vai parar de se machucar assim? - eu perguntei num fio de voz
Eu deslizei a mão que estava na testa dele pela lateral de seu rosto, parando ao lado do travesseiro. Eu sentia meus olhos ardendo, e aquilo doía mais que qualquer um dos cortes no meu corpo.
- Me desculpe... - eu sentia minha voz morrer conforme a maldita lágrima escorria por meu rosto. Graças a Athena a enfermaria estava vazia.
Hank começou a se mover, lentamente. Seus sentidos ficaram mais aguçados, seu corpo se moveu de forma mais determinada. Parecia ser alguém saindo do estado de sonolência para o de consciência. Hank suspirou e com uma voz engrolada, fosse pelo sono, fosse pela letargia dos ferimentos, ele proferiu uma pergunta. Poderia ser para o nada, para o vazio, para o além, mas ela e ele sabiam que não. Ela sabia que ele sabia que ela estava ali.
O que está fazendo aqui, Lygia?
O tom de voz do lobo era calmo, como se a raiva tivesse se esvaído. Mas parecia lento e triste. Era como se não houvesse mais espaço para outro sentimento que não fosse tristeza.
Aquilo havia me assustado. Desde quando ele estava acordado? O quão consciente ele estava? Ele havia me ouvido?
Ele não olhava em minha direção, mas Hank em condições normais não precisava dos olhos para encontrar ninguém, pois o podia fazer pelo olfato ou pela audição. Ou ao menos, seria isso que eu pensaria se não estivesse em pânico. Eu teria simplesmente saído de fininho, e evitado mais complicações para um mesmo dia.
Mas eu estava em pânico.
E como uma boa pessoa em pânico, eu tomei a decisão mais estúpida que eu poderia ter tomado.
E cobri a boca dele com a minha mão livre, mantendo a outra ainda apoiada na cama.
…
E agora o que?
Como se o impedir de falar fosse fazê-lo voltar a dormir.
- Shh… Você precisa descansar. - eu sussurrei, me inclinando sobre ele - Não se incomode comigo, apenas… fique bem.
E o que sobrava do meu juízo aparentemente foi dar uma volta. Eu queria apagar aquela tristeza dele. Trocá-la por qualquer coisa. E saber que uma parte dela (ou talvez quase toda) era culpa minha, me sufocava mais ainda. Eu só queria… impedir que ele viesse parar numa maca daquelas de novo.
Era um pedido tão errado assim?
E do jeito que eu estava, eu encostei meus lábios nas costas dos meus dedos. Os mesmos que estavam sobre a boca dele.
Hank pareceu surpreso, mas o choque durou alguns segundos só. Ele suspirou e moveu o rosto para o lado, logo após o beijo indireto dos dois. Sua tristeza não parecia ter amenizado, mas estava no mesmo nível, talvez pior.
Delicadamente, Hank tirou a mão da amazona da sua boca e suspirou. Ele assentiu com a cabeça, concordando com a parte de descansar. Ele não parecia concordar ou precisar dormir, mas não discutiu. Ele apenas aceitou.
Lygia sentia que aquele lobo ferido, sem vontade de reagir, que aquele lobo fraco, só não queria mais apanhar. Como um cão ferido, ele não via mais os carinhos dela como carinhos.
Aliás, que carinhos? Lygia gostava dele, isso era verdade, mas nunca demonstrara abertamente. Nunca tinha dito nada de reconfortante sem uma pitada de acidez ou de humor, ou ainda de ironia.
Ela sentiu tudo isso do cosmo de Hank. Mas que sua habilidade, o cosmo dele falava.
Eu podia sentir meu rosto em chamas assim que o senso comum voltou a clarear minha mente.
Eu queria fugir, falar com ele, morrer, resolver aquela situação, voltar no tempo, sumir e pedir desculpas... Tudo ao mesmo tempo.
Respirei fundo, voltando a me erguer para longe dele. Eu só queria ter mantido uma distância segura entre nós. Mas a verdade é que eu estava tão desesperada para que nada mudasse, que eu não percebi quando que eu mudei.
E no final, a distância que eu queria que fosse segura parecia ter se tornado um abismo. E aquela tristeza que ecoava no cosmo dele me atirava bem no fundo desse abismo.
E eu não podia culpar a ninguém que não fosse eu mesma. E agora, era hora de ter coragem não para bater o pé.
Mas para baixar a guarda.
- Eu sinto muito. - eu falei, sem coragem de pedir por desculpas, olhando para uma dobra no lençol muito interessante - Eu estava com medo de te deixar chegar muito perto. De que você visse tudo o que eu sempre tento esconder. E eu te machuquei por causa disso. - as palavras saiam truncadas, relutantes e eu sentia minha voz ameaçando quebrar em vários pontos. Mas algo dentro de mim tinha certeza de que se eu parasse agora, eu nunca mais teria aquela chance - E todo o esforço para não perder o meu melhor amigo, me levou a fazer exatamente isso. - eu suspirei, levantando os olhos por um momento.
Hank moveu o rosto em direção a ela, mas a postura do lupino, sua tristeza, seu cosmo opaco não parecia ter mudado. Hank continuava triste.
O cavaleiro se moveu volvendo seu corpo de lado, movendo sua cintura e se apoiando no ombro esquerdo. Um suspiro triste e incômodo saiu dos pulmões do lobo. Foi quando o lençol se mexeu e Lygia viu os ferimentos do corpo de Hank. Ele havia se ferido gravemente na luta, mas nem de longe parecia ser o que mais o incomodava.
Hank se apoiou no cotovelo e ergueu ligeiramente o corpo, ficando em um plano um pouco mais alto. Keeva ganiu baixinho e deu um leve rosnado quando o índio se mexeu, mas o lobo não fez nenhum movimento. O índio então decidiu respondeu:
Você me pediu distância. Tudo bem, Lygia, eu mantenho distância. Eu vou me recuperar, então não se preocupe. Vou ficar bem.
Aquela foi a resposta do apache, para logo depois voltar a sua posição original. Lygia sentiu a tristeza e o abismo se tornando maiores ainda. Era quase como se Hank fosse um desconhecido, era quase como se, pior do que isso, ele não se importasse mais. O cosmo dele dizia que ela tinha conseguido o que queria, ele não iria mais se importar com ela, ele não iria mais tentar proteger ou ficar próximo.
Mas porque sentir aquilo não dava satisfação?
Eu ergui os braços para apoiá-lo por reflexo quando ele se moveu, mas a voz dele me fez parar com as mãos no ar, novamente as trazendo para perto do meu corpo.
- Pois é, eu pedi… - eu concordei, meio falando comigo mesma.
E naquele momento, eu não conseguia mais me lembrar por que. Na verdade, depois de ver o estado do corpo dele, eu não conseguia lembrar de muito mais coisa.
COMO QUE ELE FICOU DAQUELE JEITO?!
E eu tinha tomado tanto cuidado para não atacá-lo! Eu devia tê-lo deixado inconsciente no primeiro golpe!
- No final, eu fui lenta demais para perceber as coisas. - o que era uma colocação um tanto irônica, já que eu era uma das prateadas mais rápidas - Eu queria te afastar de coisas ruins. De coisas que fossem te machucar. E no fim, eu fui uma das coisas que mais te machucou. - eu peguei o lençol derrubado, cobrindo-o novamente - Eu preferia perder para o Cefeu Negro outras mil vezes mais a te ver assim. Mas… Eu precisei chegar aqui para perceber isso.
Hank ergueu a cabeça para ela, com um movimento de como se estivesse olhando para ela. Suspirando, ele então se ajustou na cama, e perguntou com simplicidade e sinceridade:
Afinal, o que você quer de mim, agora? Você vem se esforçando para me manter à distância desde que voltei da América do Norte. Agora, eu vou voltar ao meu treino e manter a distância, como você pediu. Então, eu não estou entendendo…
O que você deseja que eu faça? O que mais eu posso fazer para agradar você?
O cavaleiro de bronze suspirou triste de novo e se ajustou na cama, volvendo o rosto para o teto. Era como se encarasse o teto, mas não estava pela faixa que ainda cobria seus olhos. Hank não olhava para ela. E ela sentia que mesmo sem a faixa, Hank talvez jamais voltasse a olhar.
Ao sentir que os olhos dele talvez jamais voltassem a ela, como ela se sentiria?
Medo, tristeza, pânico, remorso, solidão, raiva… Todos aqueles sentimentos escapavam de meu corpo como vapor escapa de uma caldeira pouco antes dela explodir. Em curtos e rápidos jatos que anunciam a calamidade.
Como assim; o que eu queria dele?!
Eu abri a boca uma dúzia de vezes, algumas para responder o que eu realmente queria, mas era egoísta demais. Outras para simplesmente xingar, mas eu não me sentia no direito, e aquilo era uma novidade.
Eu não sabia o que fazer, nem o que dizer. Uma situação imperdoável para minha posição. Aquele… Vazio que Hank emanava me sufocava de uma forma que respirar doía. Eu podia ouvir meu coração batendo tão alto que nem meus pensamentos mais eu poderia ouvir direito.
E a caldeira explodiu.
Não como uma onda de cosmo, como da outra vez. Dessa vez, foi uma tsunami de palavras. E mais tarde, eu não sei se saberia dizer o que era pior.
- Você pode começar me devolvendo minha sanidade. E meu auto controle. E meu coração! - e minha voz quebrou num choro baixinho, porém incontrolável - Você pode voltar no tempo? E… E não ser você? Você pode reconstruir todos os meus muros que você derrubou? - no futuro, eu me perguntaria como eu não estava gritando naquele momento. Mas acho que o medo não me deixava com forças para aquilo, o que me restava com um fio de voz, interrompido por soluços - Você pode não me deixar confortável ao seu redor? Ou não me fazer esquecer do tipo de pessoa que eu sou? - eu tentava limpar o rosto com as mangas do meu moletom, mas as lágrimas que eu secava pareciam ser substituídas pelo dobro da quantidade de antes - Você pode não me fazer gostar de você?
Eu queria sair correndo dali de dentro, mas aparentemente toda a força de minhas pernas estava sendo usada para me manter em pé.
Hank se ergueu e a abraçou. O mesmo abraço que ela gostava, o mesmo abraço que ela reconhecia. Hank não disse nada, apenas a envolveu com um abraço e esperou. Quente, confortável e firme.
Aquele calor do cosmo e do corpo de Hank, aquela sensação de proteção, aquela miríade de sensações protetoras voltara com força, como se nunca tivessem ido. Talvez estivessem lá, mas a fenda que Lygia abrira não permitia-lhe observar. O abraço que ela tanto recusara estava ali novamente do jeito que estava quando ela o deixara.
Num momento, eu estava chorando como não me lembrava de já ter chorado um dia. E no momento seguinte, eu me senti dentro do abraço dele, e foi como se o tempo tivesse voltado.
Minha respiração, meus batimentos e até meu choro pararam por um instante. Conforme meu cérebro momentaneamente prejudicado entendia o que estava acontecendo - ou seja, lentamente -, eu sentia a pressão de sentimentos negativos se desfazendo, e um choro novo, esse de alívio, começava a assomar no fundo da minha garganta.
Quase como que uma sensação fora do corpo, eu senti meus braços se fechando fracamente ao redor dele, e conforme eu enterrava meu rosto no peito dele, eu percebia que aquela era a primeira vez que eu realmente o abraçava de volta.
As costas dele sempre foram tão largas?
Hank manteve o abraço quente e confortável na garota, puxando-a para mais perto de si. Seu corpo manteve a garota segura, de modo que ela podia se sustentar usando o corpo do lobo como suporte. Hank apoiou o queixo sobre o topo da cabeça da amazona e suspirou mais uma vez, desta vez de alívio. Sua voz saiu confortável e calma, como sempre fora, quando ele disse:
Você tem um jeito engraçado de mostrar que gosta das pessoas. Te assustou tanto assim eu dizer que gosto de você, aquele dia em Tóquio?
Hank enfiou os braços por baixo das axilas de Lygia, puxando os braços dela até seu pescoço. Uma de suas mãos puxou a cabeça da amazona novamente em direção ao seu peito e o outro prosseguiu em sua cintura, sem nenhuma volúpia. Hank a deixou confortável, aquecida e protegida, antes de prosseguir a falar:
Mas não, você não precisa se preocupar, Lygia. Eu escolhi esse caminho por opção própria e eu protejo Athena pelas minhas próprias convicções. Eu estou aqui porque desejo estar aqui. E antes de conhecer você, a minha estadia e a do Keeva no Santuário era fria e vazia. Você tornou nossos dias aqui melhores e a saudade de casa suportável.
Eu agradeço sua preocupação. De verdade. Mas eu realmente desejo defender o mundo, para que a natureza e os humanos possam enfim voltar a serem um. Esse é meu objetivo e lutar por Athena o meio.
Hank sentou-se na maca e conduziu delicadamente a menina a ir com ele. Ele acariciou a cabeça dela, a confortando ainda. E então, ela prossegue, concluindo:
Eu gosto de você. De verdade. E está sendo difícil gostar de você com seu esforço constante em me ferir e machucar. Por favor, pare com isso e relaxe.
Você…
Pode…
Confiar…
Em…
Mim…
E essa foi sua conclusão. O carinho e o colo estavam maravilhosos. Mas como ela reagiria a esta declaração do apache?
Eu me sentia tão, tão cansada naquele instante, que só deixei ele me ajeitar como queria, momentaneamente, escondendo o rosto quando senti os braços dele mudarem de posição.
Em algum lugar no fundo da minha cabeça, eu sabia que eu estava uma bagunça. O que era ridículo afinal, ele não podia me ver.
- Eu acho que eu não sei gostar de alguém. - admiti. Eu acho que não conseguia mais ter energia de me preocupar com minha reputação naquele momento - E sim, eu fiquei apavorada. Eu não sou exatamente uma boa menina para se ter ao lado, e no fim, eu iria te decepcionar.
Conforme eu sentia os dedos dele passando pelo meus cabelos, me dei ao luxo de fechar os olhos um pouco. Conforme ele continuava a falar, eu senti meus braços enrijecerem um pouco ao redor do pescoço dele. Lógico que ele ia continuar comprando brigas que não podia vencer.
- Se você não quer que eu me preocupe com você, então não faça coisas para me deixar com o coração na mão. Não é que eu queira que você abandone tudo… mas você não pode tomar um pouco mais de cuidado? Precisa mesmo se jogar dessa forma em todas as lutas? Não pode… pensar um pouco antes?
E então, eu o senti me puxando para me sentar ao lado dele, e novamente, eu não tive forças - física ou de vontade - para não segui-lo. Pelo visto, ele havia deixado o mais pesado para o final. Não sei se de caso pensado ou não, mas agora eu estava com os pés fora do chão, dentro do abraço dele, e fugir era praticamente impossível. O caçador havia montado uma armadilha, e eu caí direitinho dentro dela.
Mas também… pela primeira vez, eu não sentia mais tanta vontade de correr assim.
Conforme ele falava de forma pausada e passava os dedos pelos meus cabelos, eu podia sentir meus ombros retesados relaxando aos poucos. Eu podia sentir o peito dele subindo e descendo a cada respiração, e aquilo parecia me lembrar de como se fazia para respirar, que voltava a ficar mais fácil, e meu choro já estava controlado.
Fechei os olhos mais uma vez; a quanto tempo eu não sentia a paz que Hank emanava?
- Eu confio em você. Sempre confiei. Sou eu que não sou muito digna de confiança. - eu respondi. Já havia desistido de mentir tinha algum tempo - Eu realmente achei que seria o melhor. Que você ficaria bem depois e que seguiríamos nossas vidas. Achei que aguentaria seguir com isso até o fim. Mas a verdade, é que eu estava errada. Em mais de uma forma. Então, eu vou parar, sem mais dessas loucuras; eu prometo. Eu não quero nunca mais te ver assim. - eu suspirei e me peguei brincando com uma mecha de cabelo dele que caia à frente de seu pescoço.
Hank continuou acariciando a amazona, até sentir que ela estava quieta e calma em seus braços. Os ferimentos dele pareciam melhores de fato, como se a reconciliação, a conversa e o contato estivessem melhorando o cavaleiro fisicamente, como se estivessem fazendo bem para ele por dentro e por fora.
Mas ele ainda parecia pensar em alguma coisa, muito embora estivesse deixando a amazona tranquila e relaxada. E ele decidiu que deveria dizer:
Bem, eu não posso prometer que não vou lutar contra os inimigos de Athena, e normalmente eu luto com cautela. A questão é que Annis usou nosso plano contra nós e ele tinha uma milícia coesa. Eu enfrentei o que pude, mas lutei com diversas sombras de Lionete e de Hidra, que tinham aproximadamente o mesmo nível que eu. Foram vários deles. Quando terminei, o Keeva saiu correndo e eu vi o Annis te atacar.
Hank deu uma pausa e ergueu delicadamente o rosto dela para olhar para ele, muito embora ele não pudesse devolver o olhar. E Então, ele prosseguiu:
Não havia outra coisa a se fazer. Eu fiz exatamente a mesma coisa que você. Tentei atrasá-lo, detê-lo, impedí-lo, mesmo sem força para fazê-lo. E aconteceu comigo o mesmo que aconteceu com você: Não fui páreo para ele. E no outro caso… Na nossa luta, entre eu e você, você literalmente me machucou e agrediu para me afastar. Acredito que se não fossem as outras pessoas falando comigo, eu realmente acharia que você tinha passado a odiar minha companhia desde Tóquio. Ali, eu lutei com raiva…
Ele suspirou.
O corvo é importante na minha cultura, e eu respeito o cavaleiro que tem a honra de envergar sua veste sagrada. Órion é o caçador perfeito, a meta que um dia eu desejo atingir, ser o caçador supremo. Lira tem o dom de esmaecer os corações e a sua amazona tem a força e a determinação do Orfeu lírico. Triângulo foi aquela que mais me ajudou. Desde a mansão da Fundação, ela tem me aconselhado. A ideia de lhe dar flores no avião foi dela. Ela tem ficado do meu lado e me amparado com toda a sua bondade e carisma, que lhe são característicos.
E Você… minha amiga de longa data, me humilhou na frente de todos eles.
Novamente, ele suspirou. Não gostava de trazer isto a baila. E o tom de voz ainda era de conciliação e não de agressividade. Era quase um pedido de desculpas por ter perdido a calma, mostrando ali seus motivos. Ele prosseguiu, ainda acariciando a amazona:
Foi por isso que me excedi. Eu não deveria, mas foi por isso que lutei com fúria. Porque desde lá de Tóquio, você me chama do mesmo jeito que o grupo de caça: De filhote.
Sem querer me gabar de nada, mas mesmo quando eu era um filhote eu sobrevivi a um desmatamento e uma caça implacável do homem branco na minha tribo. Já não sou um filhote há um tempo. Fazer pouco da minha força me ofende.
Ele fez outra pausa, mais curta desta vez e concluiu:
Eu sei que não sou forte como você. Mas também não sou um cavaleiro medíocre. Gostaria que respeitasse um pouco mais isto também.
Depois de colocar as coisas desta forma, sem acusar, sem ser agressivo, sem mesmo mudar ou erguer a voz. Pelo rosto dele, ele parecia precisar dizer isto. Prosseguindo o carinho, ele tocou os lábios na testa dela, com o beijo mais carinhoso que Lygia já recebera na vida. Hank então disse uma frase, como se quisesse conversar ainda, sobre outro assunto. Ele a puxou mais para perto e então lançou a pergunta, aproveitando a defesa baixa da amazona.
E o que fazer sobre nós?
Eu podia não concordar com tudo o que ele falava, mas estava simplesmente cansada demais para discutir. SIm, eu sabia que tinha ido longe demais naquela vez. Mas vê-lo ali, de pé, depois de “morrer” na minha frente, agindo da mesma foram, como se nada tivesse acontecido… Da mesma forma que ele havia chegado ao limite dele, eu havia também.
Mas para variar, eu sempre atacava com um requinte de crueldade. E essa era a principal diferença entre nós.
Olhar para ele sem ter que ser vista de volta era… interessante. Ele podia ser expressivo, mesmo sem os olhos. Ou será que era só por que eu já estava acostumada a olhar para ele?
- Você não é um filhote por ser fraco. Ou medíocre. - eu deixei escapar - Mas por ser bom, inocente e puro. E isso não é uma coisa ruim. - a outra alternativa é muito pior, eu pensava comigo mesma.
Eu mordi o lábio inferior. Quando que eu juntei disposição para retrucar mesmo? Bom… Já que eu já tinha começado mesmo…
- E você não tem que pedir desculpas por lutar com fúria. Eu errei e estava te deixando louco. Nada mais justo do que colocar isso para fora. - eu dei de ombros. Meus machucados incomodavam? Sim. Eles eram comparáveis aos dele? Não. Então eu podia ficar quieta sobre eles - Mas sendo honesta… Não tenho tanta certeza sobre você não ser tão forte quanto eu. Eu só sou rápida; se você tivesse me acertado em cheio, acho que seria eu nessa cama...
E ele me beijou na testa. E eu calei a boca. Me pergunto se ele podia sentir a minha vergonha. Lygia Conti, a amazona mais desaforada do Santuário, que sempre tem uma resposta para tudo e que não mede palavras nem para o Grande Mestre havia acabado de ficar sem nenhuma delas.
Eu queria enterrar o rosto nas mãos, e mais uma vez, agradeci por ele não poder me ver. Hank parecia saber a vantagem que ele havia adquirido, pois aproveitou para me puxar mais para perto ainda. Será que ele realmente não podia me ver?
Era o que eu pensava quando recebi o segundo contra-golpe daquela conversa.
Mas aquela era de fato uma excelente pergunta.
- Eu… não sei? - e a realidade me atingiu com o golpe final. E eu seria uma covarde e iria fugir da responsabilidade de pensar sobre o assunto - O que você quer fazer sobre nós?
Amazonas e cavaleiros não… tinham encontros, ou andavam de mãos dadas, ou nada assim, certo? Mas o Shiryu havia até casado…
Hank a olhou. Sim, desta vez ele realmente olhou para ela. A faixa dos olhos tinha caído e lá estavam eles, os pontos de luz castanhos olhando para ela. Ele deu um leve sorriso contente. Ele a olhou fixamente e Lygia se sentiu nua. Talvez fosse por isso que o olhar de Hank era tão constrangedor, pois evocava essa sensação.
Mas ele não parecia tenso ou irritado. Seu olhar, acompanhado do sorriso, era relaxante. Hank apenas ouviu as conjecturas dela, e voltou a acariciar os cabelos dela, gentilmente. E disse, delicadamente:
Primeiro você admite que gosta de mim. E agora implica que quer ficar comigo? Acho que eu devia ficar de cama mais vezes…
Ele deu um riso baixo e delicado de felicidade e concluiu:
Você quer ficar comigo? É isso que você quer? Eu não sei como funcionam as leis do Santuário quanto a isso, mas podemos descobrir. Porque…
Ele se aproximou do rosto dela:
Seria bom ficar com você. Se, é claro, você não tentasse se defender de tudo que eu disser ou fizer, seria muito bom ficar com você.
Ah… os olhos dele estavam bem. Thalia era realmente incrível. Eu toquei o rosto dele, passando um dedo bem de leve onde eu o havia visto se cortar, e sorri aliviada.
- Por favor, não fique de cama mais vezes. - eu reprovei, sem achar graça. Até por que a chance daquilo acontecer em breve era muito mais alta do que eu gostaria.
Cama...
Cama?
Eu me toquei que eu estava deitada sobre o peito dele, numa cama, e que ele agora podia me ver. Eu, de moletom, sem maquiagem, e que estava chorando minha alma para fora do corpo a cinco minutos atrás.
- IIHHHH! - eu tirei a mão do rosto dele depressa, usando-as para enterrar o meu. Mas ele me segurava bem o suficiente para que eu não conseguisse ir muito longe.
E não satisfeito, ele se aproximara do meu estúpido rosto inchado, e era muito, muito difícil não olhar para aqueles olhos rasgados e calorosos, mesmo que eu espiasse por entre os dedos. Eu já havia desistido de contar quantas vezes eu havia corado naquela noite. mas todas as novas vezes pareciam piores que as anteriores. E aquela não era exceção.
Meu rosto estava tão quente que incomodava, e ele estava perto demais. Eu sequer tinha espaço para abaixar o rosto e desviar do dele.
- Ah… eu… eu… eh... - qual havia sido mesmo a pergunta? Eu gaguejava através das minhas mãos e minha cabeça parecia ter dado branco. Eu só conseguia pensar que eu estava uma bagunça, e Hank estava muito, mas muito, próximo.
Por qualquer motivo fútil que fosse, eu não queria que ele me visse daquele jeito.
Hank sorriu e não se afastou. E ele passou o rosto pelo lado do rosto coberto dela e falou no lóbulo da orelha dela, fazendo uma simples pergunta:
Lygia… você se lembra do que eu te disse em Tóquio sobre sua aparência? Seja honesta.
Antes mesmo da voz, foi a respiração dele no meu pescoço que me fez arrepiar todos os pêlos da minha nuca. Lentamente, em abaixei as mãos, tirando o cabelo da frente do meu rosto como podia. Me enxuguei novamente nas mangas do moletom e só balancei a cabeça duas vezes em afirmativa.
Eu lembrava. Vagamente, mas lembrava. Isso não queria dizer que eu concordava com ele. Suspirei resignada; bom ele já tinha me visto coberta em sangue. Eu não podia estar tão pior assim...
Próximo do jeito que ele estava, eu só conseguira baixar minhas mãos até a altura do peito, e aproveitei para me erguer um pouco, numa tentativa de salvar meu pescoço, mas tudo o que consegui foi deixá-lo, novamente, perto demais.
- Eu... - eu tentei desviar o olhar, mas era muito mais difícil do que parecia - Eu não vou mais me defender. - eu suspirei. E se uma pessoa pudesse morrer de vergonha; já era possível encomendar meu velório - Eu quero... ficar com você….
Hank ergueu o rosto de Lygia mais ainda e desceu o rosto. Seus lábios se entreabriram e ele desceu, fechando os olhos e tocando os lábios dela. O beijo foi rápido em seu início, e prosseguiu profundo e lento. O lobo a puxou contra ele, e a susteve com carinho. Agora que ela estava assim, ele não deixaria que ela fugisse.
Eu não podia dizer que não esperava por isso. Mas ainda assim, foi uma surpresa quando percebi que era agora. De forma que levei cerca de dois segundos para sair do atordoamento da surpresa, para só então fechar os olhos e deslizar minhas mãos pelo peito dele acima, para finalmente entrelaçar meus dedos na nuca dele.
Eu podia sentir os braços dele se fechando ao meu redor, e não pude deixar de sorrir, mesmo com meus lábios pressionados contra os dele.
Acho que ia demorar um pouco para ele acreditar que eu não sentia mais vontade de fugir.
Hank prosseguiu o beijo, até soltar os lábios com um leve estalo. Ele a encarou, com um sorriso tranquilo e quente, para então dizer:
Aí está você. Veja se não suma de novo, por favor.
Abri meus olhos devagar, e meu coração estava estranhamente calmo. Pela primeira vez desde que eu entrara na enfermaria, ele batia como deveria, sem pular pulsações e sem ameaçar quebrar minha caixa toráxica.
- Certo; não vou. - eu me afastei dele, começando a buscar o chão com meus pés - Eu vou… voltar agora. Acho que é melhor… eu te deixar descansar mais um pouco.
Certo, mas eu ainda estava sem graça. E aquele sorrisinho de vitória dele piorava muito mais a minha situação.
Sim, eu sabia que não era um sorriso de vitória; ele estava… feliz. Talvez fosse minha imaginação afrontosa, mas eu ainda enxergava aquele característica esgar de satisfação. Suspirei e sorri de volta para ele, finalmente soltando sua mão. Bom, no fim… ele havia ganhado, fazer o que?
- Boa noite. - eu me despedi enquanto ele se ajeitava de volta na cama, girando sobre os calcanhares.
Ao passar por Thalia na saída, ela não se moveu, como se estivesse dormindo. Mas as ondas de satisfação misturado ao tédio que emanavam dela a entregavam. Do que ela estava tão aliviada? Não de uma forma boa… mas de uma forma… algo como um adulto que finalmente se vê livre de crianças encrenqueiras…
Eu girei os olhos; era tarde demais para ficar com vergonha agora. Saí da enfermaria e a luz já havia sumido do céu. Quanto tempo eu passara lá dentro mesmo?
Bom, com sorte, eu poderia dormir um pouco mais no dia seguinte, então, não me preocupei com aquilo. Toquei meus lábios de leve com a ponta dos dedos, e os senti se curvar num sorriso involuntário.
Eu definitivamente estava voltando para casa muito mais leve do que havia saído.
Suspirei e dei de ombros diante daquela preocupação. Era a coisa mais fácil de vestir, considerando a quantidade de bandagens enroladas no meu corpo, e ninguém ia me ver. Não àquela hora, não naquele lugar.
Encarei novamente o prédio da enfermaria, que se encontrava a meros 100 metros adiante.
- Quais as chances de ele estar dormindo? - eu me perguntei, mas novamente dei de ombros. Eu só esperava que ele estivesse dormindo.
Contando com essa hipótese, eu comecei a diminuir os 100 metros.
O silêncio imperava naquela região no avançado da noite, de forma que meus passos, mesmo leves, ecoavam nos meus ouvidos. Naquela mesma manhã, o local estava vazio, a não ser por nós, que havíamos acabado de chegar da desastrosa missão. Eu apostava na chance de que ela continuaria vazia.
Toquei a porta, congelando no lugar. Fechei os olhos por um segundo, tentando sentir de haviam outros tipos de emoções lá dentro, qualquer coisa que anunciasse outras pessoas.
Ou talvez eu só estivesse tomando coragem.
- Ok, isso é ridículo. - eu briguei comigo mesma, abrindo a porta o mais suavemente possível.
A enfermaria estava como sempre, vazia e silenciosa. Não havia a necessidade de policiamento ou de vigilância nas dependências do Santuário, de modo que Lygia não encontrou ninguém próximo dela até a área dos leitos. Thalia, a amazona de cálice estava descansando em um dos leitos e ela a viu, mas como se já soubesse o porquê da amazona estar ali, ela sequer se mexeu. Apenas indicou com os dois dedos da mão direita uma direção, que Lygia inferiu se tratar do lugar em que Hank estava descansando.
Ao se aproximar um pouco mais, ela ouviu a respiração forte de Keeva, mesclada com sons de arfo. O lobo parecia estar acordado, mas o mesmo não podia ser dito de seu dono.
Ao finalmente chegar próxima do leito, ela viu Hank deitado de costas na cama, com seu rosto voltado para cima. Ele parecia dormir um sono profundo, e seus olhos estavam cobertos por uma faixa, o que deixava o apache com um ar doente. O seu lobo havia sido deixado em uma maca no chão, ao seu lado. Tão logo a amazona de pavão se aproximou, Keeva rosnou e exibiu os dentes, coisa que nunca tinha feito para a amazona. O lobo parecia muito mais um animal silvestre assustador agora do que um cãozinho, como ela sempre se acostumara a ver.
Assenti de leve para Thalia, mas ela parecia cansada o suficiente para não se importar comigo, de forma que apenas a deixei descansar.
Continuei na direção que ela apontou e senti meu coração pular uma batida; como que as coisas tinham chegado naquele ponto?
E então, as más notícias não paravam de chegar. Antes mesmo de ouvir o rosnar, eu já tinha sentido a ameaça vindo de Keeva.
De forma que assim que ele começou a rosnar, eu já estava de joelhos, com a cabeça na altura da dele, um dos braços estendidos para frente, mas sem tocá-lo.
- Shhh, calma garoto. Não vamos acordar ele… - eu sussurrei. Não queria testar minha sorte na profundidade do sono de Hank - Você está bem? Não está machucado? - eu perguntei realmente preocupada.
Eu mantinha meu braço erguido, com a palma voltada para cima. A manga do meu casaco puxava para cima, mostrando o começo das bandagens no meu braço. Não era hora de ter pressa.
Keeva ainda parecia desconfiado com Lygia, mas estava bem. Os ferimentos do lobo não pareciam mais do que superficiais, mas ele seguia rosnando, realmente como um cão de guarda protegendo seu dono. Keeva parecia um misto de chateado, irritado e desconfiado, péssimas combinações para um animal. Se Lygia não fizesse algo, talvez o lobo a atacasse, o que seria, no mínimo, problemático.
Não. Ele não estava nada feliz. Mas parecia estar bem, ao menos, fisicamente. Agora vamos ser francos, eu era uma ameaça que havia posto o irmão dele naquela cama.
Tudo bem que ele estava naquele estado por culpa dele, mas eu não ia conseguir discutir aquele tipo de nuance com Keeva, muito menos naquela situação. Eu suspirei, cansada. No fundo, eu também me sentia culpada. Eu podia não ter desferido os golpes que o deixaram naquele estado, mas eu era o motivo para ele ter perdido a calma daquele jeito.
- Eu sei. Eu também não estou feliz com o que aconteceu. - eu sussurrei, esticando o braço mais um pouco, como se fosse acariciar a lateral da cabeça de Keeva, mas parei ainda a uma distância não ameaçadora - Eu preferia que fosse eu ali naquela cama… Ou melhor, que a gente nunca tivesse ido para aquela arena... - eu suspirei, deixando transparecer a culpa, preocupação e o leve toque de tristeza que me fizeram ir até àquela enfermaria.
O lobo recuou a cabeça, mas não atacou. Ainda parecia lembrar quem era a menina, ainda parecia lembrar algumas coisas. Ele rosnou de leve e se afastou, rodeando a cama e se deitando do outro lado da mesma. Hank não se moveu, mas Keeva não parou de rosnar e nem de mostrar os dentes. Apesar de ter recuado, não parecia ter ainda perdoado a amazona, muito embora seu comportamento tivesse aberto uma brecha para o acesso ao leito onde o bronzeado descansava.
Deixei um suspiro aliviado escapar por entre meus lábios ao ver Keeva se afastar. Me levantei, me aproximando da maca, parando ao lado de Hank, cujo peito subia e descia lentamente.
Passei um dedo sobre a parte superior da venda, roçando levemente contra a testa dele, como se tirasse o cabelo dele de cima de seu rosto. Eu senti um aperto no peito que de repente tornou respirar algo muito difícil.
- Idio... ta! - eu cobri a boca com a outra mão, abafando um soluço e acalmando minha respiração novamente - Quando você vai parar de comprar brigas que não pode ganhar? Quando vai parar de se machucar assim? - eu perguntei num fio de voz
Eu deslizei a mão que estava na testa dele pela lateral de seu rosto, parando ao lado do travesseiro. Eu sentia meus olhos ardendo, e aquilo doía mais que qualquer um dos cortes no meu corpo.
- Me desculpe... - eu sentia minha voz morrer conforme a maldita lágrima escorria por meu rosto. Graças a Athena a enfermaria estava vazia.
Hank começou a se mover, lentamente. Seus sentidos ficaram mais aguçados, seu corpo se moveu de forma mais determinada. Parecia ser alguém saindo do estado de sonolência para o de consciência. Hank suspirou e com uma voz engrolada, fosse pelo sono, fosse pela letargia dos ferimentos, ele proferiu uma pergunta. Poderia ser para o nada, para o vazio, para o além, mas ela e ele sabiam que não. Ela sabia que ele sabia que ela estava ali.
O que está fazendo aqui, Lygia?
O tom de voz do lobo era calmo, como se a raiva tivesse se esvaído. Mas parecia lento e triste. Era como se não houvesse mais espaço para outro sentimento que não fosse tristeza.
Aquilo havia me assustado. Desde quando ele estava acordado? O quão consciente ele estava? Ele havia me ouvido?
Ele não olhava em minha direção, mas Hank em condições normais não precisava dos olhos para encontrar ninguém, pois o podia fazer pelo olfato ou pela audição. Ou ao menos, seria isso que eu pensaria se não estivesse em pânico. Eu teria simplesmente saído de fininho, e evitado mais complicações para um mesmo dia.
Mas eu estava em pânico.
E como uma boa pessoa em pânico, eu tomei a decisão mais estúpida que eu poderia ter tomado.
E cobri a boca dele com a minha mão livre, mantendo a outra ainda apoiada na cama.
…
E agora o que?
Como se o impedir de falar fosse fazê-lo voltar a dormir.
- Shh… Você precisa descansar. - eu sussurrei, me inclinando sobre ele - Não se incomode comigo, apenas… fique bem.
E o que sobrava do meu juízo aparentemente foi dar uma volta. Eu queria apagar aquela tristeza dele. Trocá-la por qualquer coisa. E saber que uma parte dela (ou talvez quase toda) era culpa minha, me sufocava mais ainda. Eu só queria… impedir que ele viesse parar numa maca daquelas de novo.
Era um pedido tão errado assim?
E do jeito que eu estava, eu encostei meus lábios nas costas dos meus dedos. Os mesmos que estavam sobre a boca dele.
Hank pareceu surpreso, mas o choque durou alguns segundos só. Ele suspirou e moveu o rosto para o lado, logo após o beijo indireto dos dois. Sua tristeza não parecia ter amenizado, mas estava no mesmo nível, talvez pior.
Delicadamente, Hank tirou a mão da amazona da sua boca e suspirou. Ele assentiu com a cabeça, concordando com a parte de descansar. Ele não parecia concordar ou precisar dormir, mas não discutiu. Ele apenas aceitou.
Lygia sentia que aquele lobo ferido, sem vontade de reagir, que aquele lobo fraco, só não queria mais apanhar. Como um cão ferido, ele não via mais os carinhos dela como carinhos.
Aliás, que carinhos? Lygia gostava dele, isso era verdade, mas nunca demonstrara abertamente. Nunca tinha dito nada de reconfortante sem uma pitada de acidez ou de humor, ou ainda de ironia.
Ela sentiu tudo isso do cosmo de Hank. Mas que sua habilidade, o cosmo dele falava.
Eu podia sentir meu rosto em chamas assim que o senso comum voltou a clarear minha mente.
Eu queria fugir, falar com ele, morrer, resolver aquela situação, voltar no tempo, sumir e pedir desculpas... Tudo ao mesmo tempo.
Respirei fundo, voltando a me erguer para longe dele. Eu só queria ter mantido uma distância segura entre nós. Mas a verdade é que eu estava tão desesperada para que nada mudasse, que eu não percebi quando que eu mudei.
E no final, a distância que eu queria que fosse segura parecia ter se tornado um abismo. E aquela tristeza que ecoava no cosmo dele me atirava bem no fundo desse abismo.
E eu não podia culpar a ninguém que não fosse eu mesma. E agora, era hora de ter coragem não para bater o pé.
Mas para baixar a guarda.
- Eu sinto muito. - eu falei, sem coragem de pedir por desculpas, olhando para uma dobra no lençol muito interessante - Eu estava com medo de te deixar chegar muito perto. De que você visse tudo o que eu sempre tento esconder. E eu te machuquei por causa disso. - as palavras saiam truncadas, relutantes e eu sentia minha voz ameaçando quebrar em vários pontos. Mas algo dentro de mim tinha certeza de que se eu parasse agora, eu nunca mais teria aquela chance - E todo o esforço para não perder o meu melhor amigo, me levou a fazer exatamente isso. - eu suspirei, levantando os olhos por um momento.
Hank moveu o rosto em direção a ela, mas a postura do lupino, sua tristeza, seu cosmo opaco não parecia ter mudado. Hank continuava triste.
O cavaleiro se moveu volvendo seu corpo de lado, movendo sua cintura e se apoiando no ombro esquerdo. Um suspiro triste e incômodo saiu dos pulmões do lobo. Foi quando o lençol se mexeu e Lygia viu os ferimentos do corpo de Hank. Ele havia se ferido gravemente na luta, mas nem de longe parecia ser o que mais o incomodava.
Hank se apoiou no cotovelo e ergueu ligeiramente o corpo, ficando em um plano um pouco mais alto. Keeva ganiu baixinho e deu um leve rosnado quando o índio se mexeu, mas o lobo não fez nenhum movimento. O índio então decidiu respondeu:
Você me pediu distância. Tudo bem, Lygia, eu mantenho distância. Eu vou me recuperar, então não se preocupe. Vou ficar bem.
Aquela foi a resposta do apache, para logo depois voltar a sua posição original. Lygia sentiu a tristeza e o abismo se tornando maiores ainda. Era quase como se Hank fosse um desconhecido, era quase como se, pior do que isso, ele não se importasse mais. O cosmo dele dizia que ela tinha conseguido o que queria, ele não iria mais se importar com ela, ele não iria mais tentar proteger ou ficar próximo.
Mas porque sentir aquilo não dava satisfação?
Eu ergui os braços para apoiá-lo por reflexo quando ele se moveu, mas a voz dele me fez parar com as mãos no ar, novamente as trazendo para perto do meu corpo.
- Pois é, eu pedi… - eu concordei, meio falando comigo mesma.
E naquele momento, eu não conseguia mais me lembrar por que. Na verdade, depois de ver o estado do corpo dele, eu não conseguia lembrar de muito mais coisa.
COMO QUE ELE FICOU DAQUELE JEITO?!
E eu tinha tomado tanto cuidado para não atacá-lo! Eu devia tê-lo deixado inconsciente no primeiro golpe!
- No final, eu fui lenta demais para perceber as coisas. - o que era uma colocação um tanto irônica, já que eu era uma das prateadas mais rápidas - Eu queria te afastar de coisas ruins. De coisas que fossem te machucar. E no fim, eu fui uma das coisas que mais te machucou. - eu peguei o lençol derrubado, cobrindo-o novamente - Eu preferia perder para o Cefeu Negro outras mil vezes mais a te ver assim. Mas… Eu precisei chegar aqui para perceber isso.
Hank ergueu a cabeça para ela, com um movimento de como se estivesse olhando para ela. Suspirando, ele então se ajustou na cama, e perguntou com simplicidade e sinceridade:
Afinal, o que você quer de mim, agora? Você vem se esforçando para me manter à distância desde que voltei da América do Norte. Agora, eu vou voltar ao meu treino e manter a distância, como você pediu. Então, eu não estou entendendo…
O que você deseja que eu faça? O que mais eu posso fazer para agradar você?
O cavaleiro de bronze suspirou triste de novo e se ajustou na cama, volvendo o rosto para o teto. Era como se encarasse o teto, mas não estava pela faixa que ainda cobria seus olhos. Hank não olhava para ela. E ela sentia que mesmo sem a faixa, Hank talvez jamais voltasse a olhar.
Ao sentir que os olhos dele talvez jamais voltassem a ela, como ela se sentiria?
Medo, tristeza, pânico, remorso, solidão, raiva… Todos aqueles sentimentos escapavam de meu corpo como vapor escapa de uma caldeira pouco antes dela explodir. Em curtos e rápidos jatos que anunciam a calamidade.
Como assim; o que eu queria dele?!
Eu abri a boca uma dúzia de vezes, algumas para responder o que eu realmente queria, mas era egoísta demais. Outras para simplesmente xingar, mas eu não me sentia no direito, e aquilo era uma novidade.
Eu não sabia o que fazer, nem o que dizer. Uma situação imperdoável para minha posição. Aquele… Vazio que Hank emanava me sufocava de uma forma que respirar doía. Eu podia ouvir meu coração batendo tão alto que nem meus pensamentos mais eu poderia ouvir direito.
E a caldeira explodiu.
Não como uma onda de cosmo, como da outra vez. Dessa vez, foi uma tsunami de palavras. E mais tarde, eu não sei se saberia dizer o que era pior.
- Você pode começar me devolvendo minha sanidade. E meu auto controle. E meu coração! - e minha voz quebrou num choro baixinho, porém incontrolável - Você pode voltar no tempo? E… E não ser você? Você pode reconstruir todos os meus muros que você derrubou? - no futuro, eu me perguntaria como eu não estava gritando naquele momento. Mas acho que o medo não me deixava com forças para aquilo, o que me restava com um fio de voz, interrompido por soluços - Você pode não me deixar confortável ao seu redor? Ou não me fazer esquecer do tipo de pessoa que eu sou? - eu tentava limpar o rosto com as mangas do meu moletom, mas as lágrimas que eu secava pareciam ser substituídas pelo dobro da quantidade de antes - Você pode não me fazer gostar de você?
Eu queria sair correndo dali de dentro, mas aparentemente toda a força de minhas pernas estava sendo usada para me manter em pé.
Hank se ergueu e a abraçou. O mesmo abraço que ela gostava, o mesmo abraço que ela reconhecia. Hank não disse nada, apenas a envolveu com um abraço e esperou. Quente, confortável e firme.
Aquele calor do cosmo e do corpo de Hank, aquela sensação de proteção, aquela miríade de sensações protetoras voltara com força, como se nunca tivessem ido. Talvez estivessem lá, mas a fenda que Lygia abrira não permitia-lhe observar. O abraço que ela tanto recusara estava ali novamente do jeito que estava quando ela o deixara.
Num momento, eu estava chorando como não me lembrava de já ter chorado um dia. E no momento seguinte, eu me senti dentro do abraço dele, e foi como se o tempo tivesse voltado.
Minha respiração, meus batimentos e até meu choro pararam por um instante. Conforme meu cérebro momentaneamente prejudicado entendia o que estava acontecendo - ou seja, lentamente -, eu sentia a pressão de sentimentos negativos se desfazendo, e um choro novo, esse de alívio, começava a assomar no fundo da minha garganta.
Quase como que uma sensação fora do corpo, eu senti meus braços se fechando fracamente ao redor dele, e conforme eu enterrava meu rosto no peito dele, eu percebia que aquela era a primeira vez que eu realmente o abraçava de volta.
As costas dele sempre foram tão largas?
Hank manteve o abraço quente e confortável na garota, puxando-a para mais perto de si. Seu corpo manteve a garota segura, de modo que ela podia se sustentar usando o corpo do lobo como suporte. Hank apoiou o queixo sobre o topo da cabeça da amazona e suspirou mais uma vez, desta vez de alívio. Sua voz saiu confortável e calma, como sempre fora, quando ele disse:
Você tem um jeito engraçado de mostrar que gosta das pessoas. Te assustou tanto assim eu dizer que gosto de você, aquele dia em Tóquio?
Hank enfiou os braços por baixo das axilas de Lygia, puxando os braços dela até seu pescoço. Uma de suas mãos puxou a cabeça da amazona novamente em direção ao seu peito e o outro prosseguiu em sua cintura, sem nenhuma volúpia. Hank a deixou confortável, aquecida e protegida, antes de prosseguir a falar:
Mas não, você não precisa se preocupar, Lygia. Eu escolhi esse caminho por opção própria e eu protejo Athena pelas minhas próprias convicções. Eu estou aqui porque desejo estar aqui. E antes de conhecer você, a minha estadia e a do Keeva no Santuário era fria e vazia. Você tornou nossos dias aqui melhores e a saudade de casa suportável.
Eu agradeço sua preocupação. De verdade. Mas eu realmente desejo defender o mundo, para que a natureza e os humanos possam enfim voltar a serem um. Esse é meu objetivo e lutar por Athena o meio.
Hank sentou-se na maca e conduziu delicadamente a menina a ir com ele. Ele acariciou a cabeça dela, a confortando ainda. E então, ela prossegue, concluindo:
Eu gosto de você. De verdade. E está sendo difícil gostar de você com seu esforço constante em me ferir e machucar. Por favor, pare com isso e relaxe.
Você…
Pode…
Confiar…
Em…
Mim…
E essa foi sua conclusão. O carinho e o colo estavam maravilhosos. Mas como ela reagiria a esta declaração do apache?
Eu me sentia tão, tão cansada naquele instante, que só deixei ele me ajeitar como queria, momentaneamente, escondendo o rosto quando senti os braços dele mudarem de posição.
Em algum lugar no fundo da minha cabeça, eu sabia que eu estava uma bagunça. O que era ridículo afinal, ele não podia me ver.
- Eu acho que eu não sei gostar de alguém. - admiti. Eu acho que não conseguia mais ter energia de me preocupar com minha reputação naquele momento - E sim, eu fiquei apavorada. Eu não sou exatamente uma boa menina para se ter ao lado, e no fim, eu iria te decepcionar.
Conforme eu sentia os dedos dele passando pelo meus cabelos, me dei ao luxo de fechar os olhos um pouco. Conforme ele continuava a falar, eu senti meus braços enrijecerem um pouco ao redor do pescoço dele. Lógico que ele ia continuar comprando brigas que não podia vencer.
- Se você não quer que eu me preocupe com você, então não faça coisas para me deixar com o coração na mão. Não é que eu queira que você abandone tudo… mas você não pode tomar um pouco mais de cuidado? Precisa mesmo se jogar dessa forma em todas as lutas? Não pode… pensar um pouco antes?
E então, eu o senti me puxando para me sentar ao lado dele, e novamente, eu não tive forças - física ou de vontade - para não segui-lo. Pelo visto, ele havia deixado o mais pesado para o final. Não sei se de caso pensado ou não, mas agora eu estava com os pés fora do chão, dentro do abraço dele, e fugir era praticamente impossível. O caçador havia montado uma armadilha, e eu caí direitinho dentro dela.
Mas também… pela primeira vez, eu não sentia mais tanta vontade de correr assim.
Conforme ele falava de forma pausada e passava os dedos pelos meus cabelos, eu podia sentir meus ombros retesados relaxando aos poucos. Eu podia sentir o peito dele subindo e descendo a cada respiração, e aquilo parecia me lembrar de como se fazia para respirar, que voltava a ficar mais fácil, e meu choro já estava controlado.
Fechei os olhos mais uma vez; a quanto tempo eu não sentia a paz que Hank emanava?
- Eu confio em você. Sempre confiei. Sou eu que não sou muito digna de confiança. - eu respondi. Já havia desistido de mentir tinha algum tempo - Eu realmente achei que seria o melhor. Que você ficaria bem depois e que seguiríamos nossas vidas. Achei que aguentaria seguir com isso até o fim. Mas a verdade, é que eu estava errada. Em mais de uma forma. Então, eu vou parar, sem mais dessas loucuras; eu prometo. Eu não quero nunca mais te ver assim. - eu suspirei e me peguei brincando com uma mecha de cabelo dele que caia à frente de seu pescoço.
Hank continuou acariciando a amazona, até sentir que ela estava quieta e calma em seus braços. Os ferimentos dele pareciam melhores de fato, como se a reconciliação, a conversa e o contato estivessem melhorando o cavaleiro fisicamente, como se estivessem fazendo bem para ele por dentro e por fora.
Mas ele ainda parecia pensar em alguma coisa, muito embora estivesse deixando a amazona tranquila e relaxada. E ele decidiu que deveria dizer:
Bem, eu não posso prometer que não vou lutar contra os inimigos de Athena, e normalmente eu luto com cautela. A questão é que Annis usou nosso plano contra nós e ele tinha uma milícia coesa. Eu enfrentei o que pude, mas lutei com diversas sombras de Lionete e de Hidra, que tinham aproximadamente o mesmo nível que eu. Foram vários deles. Quando terminei, o Keeva saiu correndo e eu vi o Annis te atacar.
Hank deu uma pausa e ergueu delicadamente o rosto dela para olhar para ele, muito embora ele não pudesse devolver o olhar. E Então, ele prosseguiu:
Não havia outra coisa a se fazer. Eu fiz exatamente a mesma coisa que você. Tentei atrasá-lo, detê-lo, impedí-lo, mesmo sem força para fazê-lo. E aconteceu comigo o mesmo que aconteceu com você: Não fui páreo para ele. E no outro caso… Na nossa luta, entre eu e você, você literalmente me machucou e agrediu para me afastar. Acredito que se não fossem as outras pessoas falando comigo, eu realmente acharia que você tinha passado a odiar minha companhia desde Tóquio. Ali, eu lutei com raiva…
Ele suspirou.
O corvo é importante na minha cultura, e eu respeito o cavaleiro que tem a honra de envergar sua veste sagrada. Órion é o caçador perfeito, a meta que um dia eu desejo atingir, ser o caçador supremo. Lira tem o dom de esmaecer os corações e a sua amazona tem a força e a determinação do Orfeu lírico. Triângulo foi aquela que mais me ajudou. Desde a mansão da Fundação, ela tem me aconselhado. A ideia de lhe dar flores no avião foi dela. Ela tem ficado do meu lado e me amparado com toda a sua bondade e carisma, que lhe são característicos.
E Você… minha amiga de longa data, me humilhou na frente de todos eles.
Novamente, ele suspirou. Não gostava de trazer isto a baila. E o tom de voz ainda era de conciliação e não de agressividade. Era quase um pedido de desculpas por ter perdido a calma, mostrando ali seus motivos. Ele prosseguiu, ainda acariciando a amazona:
Foi por isso que me excedi. Eu não deveria, mas foi por isso que lutei com fúria. Porque desde lá de Tóquio, você me chama do mesmo jeito que o grupo de caça: De filhote.
Sem querer me gabar de nada, mas mesmo quando eu era um filhote eu sobrevivi a um desmatamento e uma caça implacável do homem branco na minha tribo. Já não sou um filhote há um tempo. Fazer pouco da minha força me ofende.
Ele fez outra pausa, mais curta desta vez e concluiu:
Eu sei que não sou forte como você. Mas também não sou um cavaleiro medíocre. Gostaria que respeitasse um pouco mais isto também.
Depois de colocar as coisas desta forma, sem acusar, sem ser agressivo, sem mesmo mudar ou erguer a voz. Pelo rosto dele, ele parecia precisar dizer isto. Prosseguindo o carinho, ele tocou os lábios na testa dela, com o beijo mais carinhoso que Lygia já recebera na vida. Hank então disse uma frase, como se quisesse conversar ainda, sobre outro assunto. Ele a puxou mais para perto e então lançou a pergunta, aproveitando a defesa baixa da amazona.
E o que fazer sobre nós?
Eu podia não concordar com tudo o que ele falava, mas estava simplesmente cansada demais para discutir. SIm, eu sabia que tinha ido longe demais naquela vez. Mas vê-lo ali, de pé, depois de “morrer” na minha frente, agindo da mesma foram, como se nada tivesse acontecido… Da mesma forma que ele havia chegado ao limite dele, eu havia também.
Mas para variar, eu sempre atacava com um requinte de crueldade. E essa era a principal diferença entre nós.
Olhar para ele sem ter que ser vista de volta era… interessante. Ele podia ser expressivo, mesmo sem os olhos. Ou será que era só por que eu já estava acostumada a olhar para ele?
- Você não é um filhote por ser fraco. Ou medíocre. - eu deixei escapar - Mas por ser bom, inocente e puro. E isso não é uma coisa ruim. - a outra alternativa é muito pior, eu pensava comigo mesma.
Eu mordi o lábio inferior. Quando que eu juntei disposição para retrucar mesmo? Bom… Já que eu já tinha começado mesmo…
- E você não tem que pedir desculpas por lutar com fúria. Eu errei e estava te deixando louco. Nada mais justo do que colocar isso para fora. - eu dei de ombros. Meus machucados incomodavam? Sim. Eles eram comparáveis aos dele? Não. Então eu podia ficar quieta sobre eles - Mas sendo honesta… Não tenho tanta certeza sobre você não ser tão forte quanto eu. Eu só sou rápida; se você tivesse me acertado em cheio, acho que seria eu nessa cama...
E ele me beijou na testa. E eu calei a boca. Me pergunto se ele podia sentir a minha vergonha. Lygia Conti, a amazona mais desaforada do Santuário, que sempre tem uma resposta para tudo e que não mede palavras nem para o Grande Mestre havia acabado de ficar sem nenhuma delas.
Eu queria enterrar o rosto nas mãos, e mais uma vez, agradeci por ele não poder me ver. Hank parecia saber a vantagem que ele havia adquirido, pois aproveitou para me puxar mais para perto ainda. Será que ele realmente não podia me ver?
Era o que eu pensava quando recebi o segundo contra-golpe daquela conversa.
Mas aquela era de fato uma excelente pergunta.
- Eu… não sei? - e a realidade me atingiu com o golpe final. E eu seria uma covarde e iria fugir da responsabilidade de pensar sobre o assunto - O que você quer fazer sobre nós?
Amazonas e cavaleiros não… tinham encontros, ou andavam de mãos dadas, ou nada assim, certo? Mas o Shiryu havia até casado…
Hank a olhou. Sim, desta vez ele realmente olhou para ela. A faixa dos olhos tinha caído e lá estavam eles, os pontos de luz castanhos olhando para ela. Ele deu um leve sorriso contente. Ele a olhou fixamente e Lygia se sentiu nua. Talvez fosse por isso que o olhar de Hank era tão constrangedor, pois evocava essa sensação.
Mas ele não parecia tenso ou irritado. Seu olhar, acompanhado do sorriso, era relaxante. Hank apenas ouviu as conjecturas dela, e voltou a acariciar os cabelos dela, gentilmente. E disse, delicadamente:
Primeiro você admite que gosta de mim. E agora implica que quer ficar comigo? Acho que eu devia ficar de cama mais vezes…
Ele deu um riso baixo e delicado de felicidade e concluiu:
Você quer ficar comigo? É isso que você quer? Eu não sei como funcionam as leis do Santuário quanto a isso, mas podemos descobrir. Porque…
Ele se aproximou do rosto dela:
Seria bom ficar com você. Se, é claro, você não tentasse se defender de tudo que eu disser ou fizer, seria muito bom ficar com você.
Ah… os olhos dele estavam bem. Thalia era realmente incrível. Eu toquei o rosto dele, passando um dedo bem de leve onde eu o havia visto se cortar, e sorri aliviada.
- Por favor, não fique de cama mais vezes. - eu reprovei, sem achar graça. Até por que a chance daquilo acontecer em breve era muito mais alta do que eu gostaria.
Cama...
Cama?
Eu me toquei que eu estava deitada sobre o peito dele, numa cama, e que ele agora podia me ver. Eu, de moletom, sem maquiagem, e que estava chorando minha alma para fora do corpo a cinco minutos atrás.
- IIHHHH! - eu tirei a mão do rosto dele depressa, usando-as para enterrar o meu. Mas ele me segurava bem o suficiente para que eu não conseguisse ir muito longe.
E não satisfeito, ele se aproximara do meu estúpido rosto inchado, e era muito, muito difícil não olhar para aqueles olhos rasgados e calorosos, mesmo que eu espiasse por entre os dedos. Eu já havia desistido de contar quantas vezes eu havia corado naquela noite. mas todas as novas vezes pareciam piores que as anteriores. E aquela não era exceção.
Meu rosto estava tão quente que incomodava, e ele estava perto demais. Eu sequer tinha espaço para abaixar o rosto e desviar do dele.
- Ah… eu… eu… eh... - qual havia sido mesmo a pergunta? Eu gaguejava através das minhas mãos e minha cabeça parecia ter dado branco. Eu só conseguia pensar que eu estava uma bagunça, e Hank estava muito, mas muito, próximo.
Por qualquer motivo fútil que fosse, eu não queria que ele me visse daquele jeito.
Hank sorriu e não se afastou. E ele passou o rosto pelo lado do rosto coberto dela e falou no lóbulo da orelha dela, fazendo uma simples pergunta:
Lygia… você se lembra do que eu te disse em Tóquio sobre sua aparência? Seja honesta.
Antes mesmo da voz, foi a respiração dele no meu pescoço que me fez arrepiar todos os pêlos da minha nuca. Lentamente, em abaixei as mãos, tirando o cabelo da frente do meu rosto como podia. Me enxuguei novamente nas mangas do moletom e só balancei a cabeça duas vezes em afirmativa.
Eu lembrava. Vagamente, mas lembrava. Isso não queria dizer que eu concordava com ele. Suspirei resignada; bom ele já tinha me visto coberta em sangue. Eu não podia estar tão pior assim...
Próximo do jeito que ele estava, eu só conseguira baixar minhas mãos até a altura do peito, e aproveitei para me erguer um pouco, numa tentativa de salvar meu pescoço, mas tudo o que consegui foi deixá-lo, novamente, perto demais.
- Eu... - eu tentei desviar o olhar, mas era muito mais difícil do que parecia - Eu não vou mais me defender. - eu suspirei. E se uma pessoa pudesse morrer de vergonha; já era possível encomendar meu velório - Eu quero... ficar com você….
Hank ergueu o rosto de Lygia mais ainda e desceu o rosto. Seus lábios se entreabriram e ele desceu, fechando os olhos e tocando os lábios dela. O beijo foi rápido em seu início, e prosseguiu profundo e lento. O lobo a puxou contra ele, e a susteve com carinho. Agora que ela estava assim, ele não deixaria que ela fugisse.
Eu não podia dizer que não esperava por isso. Mas ainda assim, foi uma surpresa quando percebi que era agora. De forma que levei cerca de dois segundos para sair do atordoamento da surpresa, para só então fechar os olhos e deslizar minhas mãos pelo peito dele acima, para finalmente entrelaçar meus dedos na nuca dele.
Eu podia sentir os braços dele se fechando ao meu redor, e não pude deixar de sorrir, mesmo com meus lábios pressionados contra os dele.
Acho que ia demorar um pouco para ele acreditar que eu não sentia mais vontade de fugir.
Hank prosseguiu o beijo, até soltar os lábios com um leve estalo. Ele a encarou, com um sorriso tranquilo e quente, para então dizer:
Aí está você. Veja se não suma de novo, por favor.
Abri meus olhos devagar, e meu coração estava estranhamente calmo. Pela primeira vez desde que eu entrara na enfermaria, ele batia como deveria, sem pular pulsações e sem ameaçar quebrar minha caixa toráxica.
- Certo; não vou. - eu me afastei dele, começando a buscar o chão com meus pés - Eu vou… voltar agora. Acho que é melhor… eu te deixar descansar mais um pouco.
Certo, mas eu ainda estava sem graça. E aquele sorrisinho de vitória dele piorava muito mais a minha situação.
Sim, eu sabia que não era um sorriso de vitória; ele estava… feliz. Talvez fosse minha imaginação afrontosa, mas eu ainda enxergava aquele característica esgar de satisfação. Suspirei e sorri de volta para ele, finalmente soltando sua mão. Bom, no fim… ele havia ganhado, fazer o que?
- Boa noite. - eu me despedi enquanto ele se ajeitava de volta na cama, girando sobre os calcanhares.
Ao passar por Thalia na saída, ela não se moveu, como se estivesse dormindo. Mas as ondas de satisfação misturado ao tédio que emanavam dela a entregavam. Do que ela estava tão aliviada? Não de uma forma boa… mas de uma forma… algo como um adulto que finalmente se vê livre de crianças encrenqueiras…
Eu girei os olhos; era tarde demais para ficar com vergonha agora. Saí da enfermaria e a luz já havia sumido do céu. Quanto tempo eu passara lá dentro mesmo?
Bom, com sorte, eu poderia dormir um pouco mais no dia seguinte, então, não me preocupei com aquilo. Toquei meus lábios de leve com a ponta dos dedos, e os senti se curvar num sorriso involuntário.
Eu definitivamente estava voltando para casa muito mais leve do que havia saído.