Um dia, quer dizer, uma madrugada qualquer de agosto. Devia ser umas três da manhã quando cheguei em casa. A porta estava aberta, ela estava lá, tinha certeza disso. Mais cedo, antes que começasse meu turno no bar, recebi uma mensagem dela pedindo que deixasse a porta destrancada, respondi com um simples “ok. ”, minha porta estaria aberta, para dizer a verdade eu só a trancava quando Bella estava lá dentro, para que eu tivesse certeza que meu mundo estava protegido.

Como havia previsto, ela estava sentada no sofá com os pés apoiados na mesinha de centro da sala, fumando. De um lado o cinzeiro cheio daquele pó cinza e fedorento, sinal de que estava ali há muito tempo e que mais uma vez estava “quebrada”. Do outro estava Barry, o filhote de vira-lata que dei a ela de presente, mas que – sabendo que ela não cuidaria- acabou ficando lá por casa mesmo. Na televisão um filme antigo, ainda em preto e branco. Seus olhos frágeis, cansados e vermelhos fixados na tela. O clima estava estranho para qualquer um que chegasse ali, para mim estava normal, eu já sabia do que se tratava.

Joguei a mochila no canto, o que despertou a atenção dela e finalmente me percebeu. Não tentou sorrir, eu também não. Voltou seus olhos fundos para a tela da TV. Era incrível como só eu via Bella daquele jeito, fraca e sensível. Sempre fui o único a conseguir uma aproximação naquele coração gelado, mas que sempre fazia tudo intensamente.

Cansado, fui até a cozinha e me surpreendi com o que vi. Ela realmente estava mal, havia feito um lanche para mim. Ela raramente fazia isso de bom grado. Sorri, só fiz isso mesmo. Voltei para a sala, o que não demora muito. Moro num apartamento pequeno, onde sala e cozinha são –praticamente- uma coisa só, há mais dois cômodos divididos, um é o banheiro e o outro meu bagunçado quarto. Bella continuava imóvel igual a um manequim, duvidei por alguns segundos se ela ainda estava respirando.

Coloquei Barry no chão e sentei na beirada do sofá, minha face cansada observava a dela e só de colocar a mão em seu joelho em sinal de apoio, ela caiu no choro. Fiquei em dúvida se aquilo era mais uma de suas brincadeiras ou se era verdade, mas quando ela deixou aquele maldito matador de pulmões cair no meu carpete, eu tive certeza de que era verdade.

– Ele foi um idiota… – Sua voz rouca de tanto chorar e fraca se pronunciou pela primeira vez desde que cheguei. Odiava ouvi-la naquele tom. Ela era tão bonita e suave, ouso dizer que me lembravam anjos cantando. Sei o quanto isso é meloso e clichê, mas é a verdade.

Deite a cabeça em seu colo e fiquei a observa-la. Não tinha o que dizer, já não era a primeira vez que aquilo acontecia. Queria poder dizer a Bella que se ela me desse uma chance, se ela parasse de ver o Tom apenas como amigo, irmãozinho, ela sentiria um amor de verdade. Mas se não sentisse, pelo menos saberia que alguém a amava de verdade.

No fundo eu estou farto dessa situação. Eu já sabia como acabaria, já passei muitas vezes por aquilo. Na manhã seguinte acordaríamos exausto depois de uma noite de sexo, onde eu amaria mais que ela. Bella estaria sorrindo, seu coração pronto para “amar” uma outra vez. E o meu coração? Ah, ele estaria com ela. Mais um pedaço dele se foi para que Bella concertasse o dela. É estou farto daquilo e a minha ação seguinte deixa isso bem claro. Me levanto bruscamente depois de passar longos minutos olhando ela, respiro fundo e bufo. Sim, bufo igual a um boi raivoso. Aliás, eu me sinto um boi nesses momentos.

Ela sentiu que eu estava estressado, pois me olhou assustada. Machado de Assis diz que Capitu tem “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”, Bella também.

-Diga algo… – Eu queria não ter escutado tais palavras. Sorri, o sarcasmo estampado na minha cara. Cansei de ser a segunda opção dela. – Não ri. Me diga algo! Eu vim aqui para ter um apoio, não para isso. – estava exaltada, nervosa.

-Acho melhor ficar quieto. – respondi seco, grosso. Sua face incrédula me dava vontade de rir. Sabia que ela não esperava por aquilo. Não de mim.

Eu e Bella nos conhecemos há 14 anos. Morávamos no mesmo bairro, ela era a mais nova das meninas e eu dos meninos – tínhamos dez anos, sou mais velho que ela 3 meses – quase ninguém brincava conosco, restava então brincar só nos dois. Foi aí que começou a amizade, foi aí que virei seu melhor amigo, foi aí que virei um babaca.

Sabe todos aqueles “primeiros” que existe em nossa vida? Então, eu fui quase todos na vida de Bella, só não fui o primeiro amor. Eu nunca fui o amor da minha amada. Eu seria o padrinho de casamento, o padrinho de seus filhos, mas nunca serei o noivo ou o pai. O mais engraçado nisso tudo é que a família dela sempre acreditou que nessa altura da vida estaríamos casados, por que, segundo eles, “Formamos um belo casal. ” Pena que Bella não pensa igual, pena que ela prefira se entregar para outros caras do que deixar que eu a ame.

Eu já me declarei de várias formas. Serio! Já mandei flores, bombons, já fiz serenata para ela. No fim eu sempre ouço um “Você é o melhor amigo que eu posso ter”, ou “Não sei se eu mereço um amigo como você. ” Tenho vontade de me matar toda vez que ela diz coisas assim.

Bella ainda me olhava incrédula, sei que por dentro ela estava confusa e doida para me socar. Entretanto, ela levantou-se e foi até a janela. Não sei o que ela queria ver, já era muito tarde, nem o diabo estaria na rua uma hora daquelas. Estava prestes a me levantar do sofá quando ela voltou a falar, mais calma, mais doce…

-Ele não esperou nem uma semana. Quando cheguei a namorada nova estava lá. Namorada não, noiva. Noiva, Tom. Eles noivaram. Faz três dias que terminamos e ele já está noivo, eu…

-E você aí chorando, sofrendo por um merda que com certeza já estava de namorada nova há meses… – Interrompi. Meu tom de voz sarcástico fez os olhos dela queimarem de ódio. – Sabe Bella, você leva essa vida porque quer. Você não pode reclamar do Ben, você estava saindo com outro cara que eu sei. Isso quando não dormia comigo. Ele só fez o mesmo.

-Você “tá” me julgando? Thomas…. Não. Esse não é…

-Bella, eu cansei disso. Desculpa, esse é o Thomas sim. É o Thomas que tá cansado do trabalho. Que está cansado de servir de consolo para você, nos dois sentidos. – Mais uma vez eu atrapalhei sua frase. Não aguentava mais aquela situação, decidi que hoje seria o dia em que daria um basta. – Você e Ben são errados. Até eu sou errado! – Levantei do sofá. Fui em direção ao banheiro, estava um pouco nervoso e não queria ouvir o que ela ia dizer

Infelizmente, ela veio atrás de mim. Ficou parada na frente da porta do banheiro me impedindo de passar. Nossos olhares se cruzavam, ela estava zangada, percebia isso na sua respiração. Mas eu também não estava tão calmo assim.





Segundos? Não, foram minutos mergulhados naquele olhar, cheguei a me perguntar se era aquilo que eu realmente queria fazer. Sim. É. NÃO,THOMAS. VOCÊ NÃO PODE VOLTAR ATRAS.

Por fim, ela apenas me abraçou, beijou meu pescoço e eu nada fiz. Não esbocei nenhum sentimento, nada, pois já sabia aonde ela queria chegar, ninguém melhor que eu para conhecer todos os jogos de sedução da Bella. Cada vez que eu me afastava, ela investia de uma forma diferente. Até que…

-BELLA! CHEGA! EU NÃO QUERO! EU NÃO VOU SERVIR DE CONSOLO HOJE. PROCURE OUTRO. – Segurei ela pelos pulsos, no meu olhar havia um misto de raiva e dor. Tirei ela da minha frente, soltei seus pulsos que, apesar da raiva, não machuquei. Antes que ela pudesse tentar entrar no banheiro eu tranquei a porta. Quando fechei vi um olhar perdido, ela não entendia o que eu estava fazendo. Ora Bella, só estou me defendendo.

Demorei um pouco no banho, deixei a agua escorrer pelo corpo enquanto organizava minhas ideias. Ou melhor, fiquei pensando no que Bella estava fazendo lá do lado de fora. Será que chorava? Será que havia ido embora? A curiosidade me deixava num estado de ansiedade. Ansiedade de me machucar. Quando sai do banho, com a toalha envolvida na cintura, quando abri a porta, meus olhos procuraram rapidamente por ela. Eu sei, estou sendo um monstro e ao mesmo tempo um otário. Desculpa, não sei me decidir ás vezes.

Pela sala ela não estava, mas quando eu cheguei ao quarto me deparei com suas lagrimas em minha cama, seu corpo frágil sobre meus lençóis, dormia e nem parecia a mulher que me fazia feridas. Não dormi na cama, deixei Bella sozinha, pois não queria que ela achasse que eu estava voltando atrás.

A noite passaria, passava, passou. Levantei-me e fui direto a cozinha, foi quando me deparei com o bilhete preso na geladeira. “ Não me procure mais. “, dizia. Olhei para bancada e as chaves que ficavam com ela estavam jogadas por lá. Passei a mão pela cabeça, dentro de mim uma dor estava crescendo. Eu não queria que ela fosse embora, só queria que ela resolvesse a vida dela. Ou ficava comigo, ou deixava eu seguir a minha. Fiz tudo errado. Somos humanos, sempre iremos errar.



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Faz dois anos e 11 meses que eu não vejo aquele coração rebelde. Como ela me pediu, não procurei, não liguei, respeitei seu pedido. Me afastei dos nossos amigos em comum, não por não querer a amizade deles, eu não queria era estragar nossos encontros quando ela chegasse e ficasse aquele clima chato.

Larguei o emprego de barman, agora trabalho dentro de um escritório, de terno e gravata. O emprego novo me trouxesse mais dinheiro, mais possibilidades. Me mudei para um apartamento maior, levei as lembranças dela comigo, estão guardadas dentro de uma caixa e escondidas dentro do armário.

Faz dois anos e 11 meses. A única notícia que eu tive de Bella é que em breve iria se casar, mas a essa altura já havia se casado. Não, não fui convidado e, sinceramente, já esperava por isso. No fundo eu só queria ter explicado melhor.

Sexta-feira, dois anos e 11 meses depois e o que eu estou fazendo? Sentado no sofá da sala, vendo o jornal, indeciso se saio ou continuo vendo as mentirosas notícias. Saio. Caminho por entre o mar de almas inconstantes, sorrio quando vejo um casal, criança, animal.

Durante esse tempo arrumei duas namoradas, algumas noites e nenhuma delas conseguiu ficar e atingir o ponto que Bella atingia. Ainda sou tão dela. Perto da minha casa tem uma praça e como a noite estava fresca havia várias pessoas por ali. Sento-me perto de duas idosas, as cumprimento e elas me devolvem lindos sorrisos. Falavam das mulheres da atualidade, que não conseguiam enxergar os homens certos. Sorri, será que sou o homem certo para Bella? Talvez sim. Talvez não. Tenho que parar de pensar nela.



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Cinco anos sem Bella. Por que eu não esqueço a maldita? Já começo a achar que fez algum ‘trabalho’ para nunca esquece-la. Acordei durante a madrugada e só conseguia pensar nela, relembrar da vez que quebrou o braço e eu gastei minhas férias para cuidar dela. Choro. É difícil, ainda mais quando sua mente te perturba com a pergunta: “ Será que ela ainda lembra de mim? Pensa em mim?”

Sei que não. Ela se casou. Me superou. Mas eu? Thomas não superou Bella. Amaldiçoo aquele dia em que a deixei ir, os dias em que não procurei. Agora não posso reclamar, queria a liberdade e agora não sei o que fazer com ela. Pois ainda me sinto preso a Bella. Meu coração não é de meu corpo…é do corpo e da alma dela.