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Criar, sonhar, jogar .É mais que lógico é chocológico!


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Passarinho na montanha Watercolor-mountain-bird-iii-patricia-pinto

Hospital da Fundação GRAAD, Kansas, Estados Unidos

25 de julho de 2069, 13:00 – cinco meses antes da convocação de Athena

Já fazia uma mês que eu havia feito a maior aposta de toda a minha vida.

Ou melhor, fazia apenas um mês que eu quase havia morrido. Mas lá estava eu, miraculosamente de pé, completamente enfurecida.

Seria mentir que me doía apenas o orgulho. Seria uma mentira deslavada. Mesmo esforços moderados eram suficientes para que eu torcesse o rosto em dor, vai não usasse um pouco de cosmo. Mas eu não tinha tempo para sarar.

Aquela surra só havia escancarado minha maior fraqueza; eu ainda era insuficiente em combates físicos. Minha resistência e estamina eram vergonhosos para um prateado.

Agradeci pelos cuidados da equipe da fundação GRAAD, que se assustaram ao ver o tamanho dos meus ferimentos quando praticamente me arrastei para dentro do prédio. Mas o susto maior foi me ver ali, de pé, pronta para partir.

Engoli um bolo de orgulho ferido como café da manhã, sorrindo em adeus, e saí decidida rumo ao portal da América do Norte. Eu precisava chegar ao Japão. E eu estava com pressa. Apalpei minhas costelas, sentindo as ataduras por baixo de minhas roupas.

- Por favor, aguente... - eu pedi, respirando o mais fundo que me atrevia.

Quanto tempo eu iria precisar para encontra-lo? Eu não era exatamente uma especialista em seguir rastros, mas ele também não costumava se preocupar em oculta-los.

O perfil de Tokyo cortava o horizonte, mas pela primeira vez, eu não estava interessada em minha cidade favorita.

Apenas virei para o lado oposto, em direção à estação de trem mais próxima. Eu me daria ao luxo de não correr até Hokkaido.

Entre um cochilo e outro, a paisagem ia mudando através da janela do trem. Até que finalmente a paisagem explodiu em todas as cores imagináveis. Estávamos quase lá.

Hokkaido no verão era famosa por suas plantações de flores. Um ligeiro sorriso curvou meus lábios, engajem eu me perdia nos padrões das plantações. Ainda iria pegar um ônibus depois daquele trem, e só depois, começar a subir a montanha.

Ele até podia não estar se escondendo, mas não significava que chegar até ele seria fácil.

Finalmente, o sol começava a se pôr enquanto eu galgava degraus toscos de pedra. Perdida em pensamentos, eu me perguntava se eles sempre haviam sido daquela forma, ou se já haviam sido novos e retos um dia.

Ri daquela preocupação fútil, e minha risada, mesmo que baixinha e quase interna, ecoou pela montanha vazia. Pude ouvir algumas aves levantarem voo em algum lugar, e considerei que já estava num bom ponto.

Gentilmente, deixei meu cosmo se expandir. Lenta e preguiçosamente. A umidade da floresta era revigorante. A vida pulsava ao meu redor, e eu podia ver as emoções primais dos animais escondidos.

Fome, desejo, medo, saciedade. Cores sólidas e definidas; nenhum tom rebuscado como os das emoções humanas. Cheiros fortes e marcantes.

Voltei a escalar os degraus, procurando pelos tons elegantes de calma e paz que eu sabia que o precederiam.



Sons surdos e repetitivos se seguiram então. Eram marcas de que algo estava acontecendo e que não era tão natural quanto os que Lygia tinha percebido. Sua percepção, bem como seu cosmo captaram uma emoção que realmente poderia ser traçada a um humano, mas em uma escala realmente interessante: Tranquilidade. O cosmo que ela sentia, bem como suas emoções, eram tranquilas como um lago límpido. E, ao continuar seu caminho, ela logo percebeu quem era o dono daquelas emoções. E quem ela procurava.

Mesmo a distância, era possível ver sua silhueta. Cabelos castanhos, cortados de forma eriçada, para facilitar sua visão desciam pela nuca coberta pelo suor. Um físico extremamente definido e musculoso, com traços de intenso treinamento marcial marcavam o tórax e abdômen do rapaz, Braços marcados, mãos com faixas e pernas musculosas, ocultas apenas por calças largas completavam a indumentária. E, apesar dos movimentos serem sequenciais e naquele momento, suas pernas acertarem repetidamente um tronco de árvore posicionado para este fim, um pequeno pardal estava em seu ombro, ocupado em bicar as próprias penas, como se o rapaz treinando fosse nada mais do que um galho balançando ao vento. Apesar do cosmo emanado por ela, o rapaz não parecia ter notado sua presença. Ou pelo menos, não estava incomodado com ela.



Zhao de Grou. Precisei me esforçar para manter o rosto sério diante da inusitada cena de um pardal empoeirado em um cavaleiro treinando.

Mas por algum motivo, aquela cena parecia certa.

Sorri, parando de andar e deixei meu cosmo relaxado; não o expandia, mas também não o estava bloqueando. Agora que eu havia parado, percebi que arfava de leve.

Encostei um ombro na árvore mais próxima, educadamente esperando-o terminar sua sequência. Não nego que também estava aproveitando aquela sensação de paz; não era a mesma leveza de Hank, ou o silêncio de Sunao.

Era uma paz macia, que quase acariciava o corpo. Longe de ser irritante, o som ritmado dos golpes contra a madeira, quase convidavam à meditação.

Eu não era exatamente do tipo de meditar, então, me contentei em observar o passarinho, enquanto assistia a sequência de golpes e desfrutava daquela paz confortável.



O rapaz, já identificado mentalmente por Lygia como Zhao de Grou terminou sua sequência, abaixando os braços e descendo sua perna, como se estivesse respondendo ao convite mudo de deter sua sequência. El arfou, fazendo com que o pássaro ficasse alerta e se erguesse, voando para uma árvore próxima. E então, Zhao começou a caminhar em direção a um pequeno monjolo que ali estava, para livrar-se do suor.
Ao mesmo tempo, ele então deu o primeiro sinal de notar a presença da amazona, dizendo

- O que a traz aqui, senhorita amazona?



- Eu estava de passagem. - eu ri da minha própria mentira descarada - O ar das montanhas é revigorante.

Eu me desencostei de minha árvore, cobrindo a distância que nos separava, mas mantendo respeitosos três metros de distância.

- Por favor... Lygia está bom. - eu agradeci ao cumprimento, olhando em volta. Ah... Eu não sabia fazer aquilo - Desculpe atrapalhar seu treino. Eu não queria te interromper, mas acho que fiquei parecendo uma stalker estranha... - falei meio sem pensar, num momento de reflexão, coçando minha bochecha. Ao me pensar agindo como uma criança de doze anos, eu pigarreei, ajeitando a mochila em minhas costas

- Senhor Cavaleiro - eu repeti a cortesia, mesmo que tenha me soado um pouco estranha - Você estaria ocupado?

A pergunta era quase retórica, mas eu esperava uma resposta. Ele estava OBVIAMENTE treinando em isolamento, mas eu havia tido o nervo de ir até lá incomodá-lo (um de meus muitos talentos). Me permiti me aproveitar daquela tranquilidade que ele emanava um pouco mais, conforme eu sentia meu rosto ameaçar ficar quente.

Aquilo era mais embaraçoso do que eu havia pensado.



Zhao olhou para a amazona com gentileza quando ela se aproximou. Ele fez uma curvatura de cabeça, gentil e educadamente, movendo seus olhos para além dela. Lygia não entendeu o motivo, até perceber que ela mesma tinha olhado em volta, o que guiara o olhar de Zhao na mesma direção.

Ele não pareceu se incomodar com a intimidade imposta por Lygia e por sua vez, quando chegou sua vez de responder, ele o fez com polidez, educação e novamente gentileza:

- Zhao está bom por mim também, Lygia. E eu já terminei os afazeres da manhã e as minhas tarefas aqui, além de ter concluído minha sequência de treino matinal. Então, não estou ocupado. E mesmo que estivesse, seria uma honra ajudar uma irmã de armas. Diga, do que precisa?

Zhao era gentil e cortês e sua tranquilidade se refletia em suas palavras e ações. Então, aguardando a resposta, ele começou a se lavar, jogando a água sobre os ombros e passando-a no rosto. Lygia sentiu o frescor da água e das emoções de Zhao. Aquele homem apreciava os prazeres simples da natureza.



No instante em que ele cobrou os olhos com as próprias mãos, eu girei os olhos, pedindo força aos céus. Senti meu estômago se desdobrar e meu rosto queimar em vergonha.

E isso durou cerca de dois segundos. Inspirei fundo, e deixei o frescor daquela água da montanha limpar minha confusão mental. As emoções de Zhao, tão serenas e em controle, contaminaram minha inquietude e me ajudaram a recuperar o controle.

Voltei a olhar para ele, que era gentil o suficiente para se colocar à disposição, e pedi desculpas mentalmente pelo incômodo. Num reflexo que estava se tornando um hábito, apalpei minhas costelas de leve.

Ai.

- Eu... Preciso de ajuda. - certo, aquilo foi quase um sussurro. Eu podia fazer um pedido com um pouco mais de dignidade. Pigarrei e tentei de novo - Eu preciso desenvolver minhas habilidades de lutas. Eu não sou especialmente resistente, ou fisicamente forte. E você é o melhor artista marcial que eu conheço. - o elogio não era vazio. O cavaleiro de Grou era um destaque no rank de prata quando o assunto era combate corpo a corpo - Se eu continuar assim, vou ser um peso para meus companheiros e uma vergonha para o Santuário. Eu poderia ser atrevida o suficiente para pedir pelo seu treino? - dito isso, eu juntei as duas mãos durante demoras pernas, curvando o corpo para frente.

Eu até poderia não fazer isso dela com frequência, mas eu conhecia a etiqueta de várias partes do mundo.


Zhao terminou de se lavar e então olhou novamente para Lygia, se aprumando. Ele passou uma toalha, que estava ali, apoiada ao lado do monjolo e suspirou, livrando-se do breve cansaço que lhe acometia. O cavaleiro de Grou mediu Lygia, ouvindo atentamente o que ela tinha a dizer. Pensativamente, e com uma expressão concentrada, ele então disse:

- Claro que poderia pedir sim, eu não me incomodaria em treinar um irmão de armas, mas quando seria isto?

O cavaleiro terminara de se secar e aguardava a resposta, olhando para Lygia com um olhar preocupado.



Pisquei confusa, mas um sorriso quase instantâneo se abriu. Eu pensei que teria que realmente convencê-lo, mas Zhao parecia disposto e aberto.

E então a preocupação dele me atingiu antes mesmo da pergunta. Olhei em volta e depois para as minhas próprias roupas. Certo, não eram tradicionais como as dele, mas meu abrigo de tactel era suficiente para aguentar ao menos o começo dos treinos. E eu havia trazidos peças de couro batido do santuário comigo, caso roupas civis não fossem o suficiente.

- Bom... Você disse que não estava ocupado... - ele não teria respondido por cortesia, teria? Ou será que ele precisaria de tempo para preparar algo? Não queria dar todo esse tipo de trabalho - Mas se agora não for conveniente para você, posso esperar um pouco.



O semblante de Zhao se fechou, mas não com raiva. A preocupaçãoi se tornou explícita no olhar dele e logo após ele começou a  se aproximar.

- Não é questão de estar ocupado. Você está ferida... - o rapaz disse com uma entonação de voz tensa, como que se realmente estivesse preocupado pelo estado físico da colega.

- Treinos costuimam ser exaustivos, e você, nestas condições, pode agravar seu ferimento. Como se feriu assim? Foi na última missão?

Zhao parecia disposto a tocar a ferida de Lygia, como que para examiná-la, mas deixá-lo avançar além disso seria uma escolha dela.



A mudança brusca de estado de espírito me pegou de surpresa. Mas era curioso não ver raiva

...

E quando foi que ele percebeu isso mesmo?

Quando ele pareceu se aproximar demais, eu recuei algo como que meio passo para trás, mas troquei o peso do corpo de um pé para o outro, para disfarçar.

- Não foi nada demais. Eu posso me mover bem. - eu desconversei. Bom, eu poderia me mover. Bastava gastar um pouco de cosmo para atenuar a dor - Eu me só me descuidei. Por isso decidi que deveria aprender a lutar melhor, sabe?



Zhao ergueu os olhos com desaprovação e continuou o avanço, tocando de leve no ferimento de Lygia. Ele pareceu sério e disse:

- Se você vai treinar seu corpo, não vai adiantar usar cosmo para suprimir seus ferimentos. Venha, entre. Eu vou lhe ajudar com isto, e depois treinamos, eu prometo, tudo bem?

Zhao pareceu entender a urgência, mas parecia saber desagradavelmente o bastante sobre a fisiologia de um cavaleiro para não ser enganado. Ele então, voltando à sua habitual tranquilidade, passou a marchar em direção à uma pequena cabana próxima dali, esperando que a garota a acompanhasse.



Ao mesmo tempo em que ele desviou os olhos do meu ferimento para me encarar, eu senti o impacto da contrariedade. Talvez fosse melhor eu calar a boca...

Ai!

E o atrevido colocou mesmo a mão em mim! Certo, sem drama. Não doeu, nem nada assim. Foi só o susto mesmo. Mas como ele sabia exatamente do meu plano?!

Mas, ao contrário de minhas expectativas, ele não parecia ofendido, e ainda prometeu me ajudar, mesmo com minha conduta pouco louvável.

Conforme eu era novamente abraçada por aquela tranquilidade inicial, eu deixei o ar sair por entre meus lábios, admitindo derrota.

Uma pitada de expectativa me fez levantar a cabeça, e pude ver a pequena cabana adiante.

Passei a segui-lo, me livrando do ar contrariado.

- Obrigada. E desculpe por isso... - eu me desculpei pelo meu ato. A verdade é que não me agradava mostrar a ninguém o que estava embaixo do meu agasalho.



O Santo de Grou continuou o avanço, já novamente tranquilo com a situação. Ele não disse mais nada até chegarem à casa que Lygia tinha vislumbrado. Não era nada de muito impressionante, na verdade. Era toda feita em madeira, com portas corrediças em sua entrada, que neste momento estavam abertas, mostrando que a sala de estar nada mais era do que alguns tatames organizados ao chão, formando um comodo vazio, a exceção de uma mesa de madeira ao centro, acomodada sobre um buraco no chão. Lygia reconheceu que a casa que Zhao usava de abrigo era uma antiga casa de chá do final do período Tokugawa, agora obiviamente abnadonada. O buraco no chão era onde a fogueira era acesa e o chá era preparado sobre aquela pequena mesa. Zhao entrou com a moça, se curvando para uma placa que estava na parede oposta com o nome Hasegawa, um sinal de respeito aos donos originais da casa. Zhao seguiu para o cômodo lateral. Outrora o que teria sido um depósito, tinha virado o dormitório de Zhao. Ele havia implementado três futons um sobre o outro para dormir e uma cabaça cheia de água ao lado deles. O quarto tinha ainda um pequeno celular deixado sobre duas prateleiras, estas cheias de livros e revistas. Os livros pareciam antigos, mas não velhos. As revistas pareciam novas, mas envelhecidas pelo tempo. Era bem curioso. Zhao separou um futon dos demais e finalmente falou então.

- Você não precisa se desculpar, é natural querermos nos defender psicologicamente quando estamos feridos, mas eu sei como é treinar o corpo e ele precisa estar em condições para isto. Deite-se aqui - Ele apontou para os dois futons  - E descanse. Eu já volto para te ajudar a se curar.

Sem dizer mais nada, Zhao partiu, saindo do cômodo e deixando Lygia à vontade. O futon parecia confortável e o cômodo tinha uma pequena janela, por onde entrava uma agradável brisa fresca. Restava saber o que Zhao tinha ido fazer.



- Como assim... "volta para me curar"? - eu perguntei para o cômodo vazio.

Olhei em volta, analisando o ambiente. Não que houvesse muito o que analisar, mas aquele celular perdido no meio daquele cenário de filme de época parecia gritar comigo, e eu ri de levinho.

Olhei para o futon que ele se dera ao trabalho de estender, e comecei a ter minhas dúvidas sobre onde acabava a cortesia e começava a condescendência. Aquele pensamento fez um ligeiro flash amarelo de desgosto cruzar a imagem do futon, mas ele logo for diluído pela tranquilidade que agora não só parecia vir apenas de Zhao, mas de toda aquela casa. Emoções podiam impregnar ambientes?

Estiquei o olhar sobre os livros e revistas, me perguntando sobre seu conteúdo e o que Zhao teria interesse além de artes marciais. Cogitava sobre folhea-las ou se isso pareceria invasivo. No fim, eu podia só fazer o que ele me pediu e deitar.

Mas a ideia não me agradava nem um pouco. Eu estava impaciente demais para "deitar e descansar".

Certo, nem um, nem outro.

Me forcei a sentar sobre o futon, pernas cruzadas, ainda pensando em como ele pretendia me curar. De forma inconsciente, eu batia o dedo indicador contra o joelho, quase marcando os segundos.



O quarto não aparentava ser sujo ou desorganizado, mas realmente dava a aparência de ser tranquilo, assim como seu morador. As revistas, agora que Lygia tinha posto seus olhos sobre as mesmas, falavam sobre curiosidades e atualidades, que a julgar pelo estado delas, não deviam mais ser tão atuais assim.

Lygia calculou uns quinze minutos até Zhao voltar. Ele trazia em suas mãos alguns copos de vidro, uma porção de algodão, álcool e um acendedor de fogueira. Ao ver a moça sentada, ele sorriu e disse:

- Deite-se, Lygia. Deite-se nos dois futons. Você vai dormir aqui durante o treinamento, se desejar ficar na casa. Mas agora, para curá-la, eu preciso que se deite.

Zhao começou a embeber o algodão em álcool e aquecer a borda dos copos de leve com o acendedor. Então estava nesta lida, virou-se de costas para ela e então, completou o pedido.

- De preferência, eu preciso ver o local ferido para trabalhar melhor. Não vou pedir para se despir, óbvio, mas se possível, levante a sua blusa no local do ferimento, por favor, Lygia. Vai ser bem rápido.

Zhao continuou na lida, se calando logo depois desta frase. Mas o que quer que fosse que o cavaleiro iria fazer, o faria logo após terminar.



Levantei os olhos ao ver Zhao entrar no quarto, e por um segundo pensei que ele ia realmente fazer primeiros-socorros, mas não consegui encaixar copos de vidro e um acendedor em nenhum procedimento de curativos...

Olhei para os futons e para onde eles estavam localizados.

Nops.

Eu não ia ficar no quarto dele. De jeito nenhum. Abri a boca para argumentar, mas ele parecia suficientemente focado para me fazer desistir. Pelo menos, por hora.

Ele não era Sunao; não seria preciso uma luta para convencê-lo de algo. Eu podia simplesmente me deslocar para a sala mais tarde.

Engoli seco, mas era óbvio que ele não poderia fazer nada por cima do meu casaco. Eu não queria ter que olhar para aquilo... Por que precisaria mostrar?

Bom... Sem tratamento, sem treinamento. Suspirei resignada, e abri o zíper, tirando o agasalho. Tirei a camiseta também, e só quando passei a gola pelo meu pescoço que lembrei sobre o detalhe de "não me despir"... Dei de ombros mentalmente e deixei a camiseta no chão, juntamente com o agasalho.

Logo abaixo da linha do meu top, era possível ver bandagens novas enroladas em meu tronco. Me livrei delas com cuidado; algo me dizia que precisaria delas depois.

Minha pele por baixo das bandagens estava imaculada. Girei os olhos, estalando a língua contra o céu da boca, e me desprendi da última fagulha de cosmo que eu estava mantendo acesa.

Caso Zhao estivesse prestando atenção, poderia ver a imagem de meu tronco tremeluzir e revelar o que às bandagens estavam escondendo.

A primeira coisa que chamava a atenção era o caleidoscópio de cores do hematoma que abraçava a a parte superior do meu flanco. Uma cicatriz redonda e ainda vermelha, do tamanho de uma moeda, marcava a ponto onde eu tinha sido atingida, na frente e nas costas. Por muito pouco, eu não havia tido um pulmão perfurado, mas eu sabia que ainda tinha duas costelas fraturadas.

Eu dobrava as bagagens e minhas roupas de forma meticulosa. Não queria ver a expressão dele ao ver o meu "não foi nada".

Eu sabia que estava feio, e não precisava ser lembrada disso.

Só esperava não ser chutada dali.



O cavaleiro de Grou se concentrou na ferida de Lygia. O olhar era sério como o de um médico, concentrado no paciente, sem realmente olhar os traços de quem tratava. Ele então, gentil e tranquilamente, deitou Lygia conduzindo-a com a mão, sem tocá-la. Uma vez que a amazona estava deitada, Zhao disse com uma voz suave:

- Relaxe...

Rapidamente, munido de uma pinça para segurar o algodão, Zhao ateou fogo ao chumaço, para logo em seguida colocar aquele algodão candente dentro de um dos copos. O fogo logo se extinguiu e o copo adquiriu uma leve coloração azulada. Lygia sentiu aquele cosmo tranquilo permear o quarto inteiro e então Zhao pegou o copo pela base e colocou a boca dele em cima do ferimento de Lygia.

Surpreendentemente, não doeu.

Pelo contrário, a dor que ela sentia começou lentamente a se aliviar. Zhao deu um sorriso, aliviando sua expressão e logo, repetiu o processo, começando com as laterais do ferimento.



MASOQUE?!?!

Eu queria gritar ao ver aquele vidro quente o suficiente para mudar de cor se aproximando de mim. Mas a tranquilidade me abraçava de forma a sussurrar em meu ouvido que tudo ia ficar bem.

Fechei os olhos com força, antecipando o contato. Mas para minha surpresa, era até que... Agradável?

Abri um dos olhos com cautela, e lá estava o copo grudado em mim, como que por vácuo, puxando minha pele num calombinho engraçado.

Vi que ele sorria, e continuava a colar copinho atrás de copinho, fazendo um tipo de "crista" em meu tronco.

- O que é isso? - eu não resisti à perguntar, olhando os calombinhos de pele se formando.



Zhao continuou o trabalho, concentrado, mas com o semblante tranquilo de sempre. O vidro massageava a garota, fazendo a dor incômoda ir embora rapidamente.

- Isto é Chi Kung.Um estímulo da sua energia corporal através da minha. Não sou eu, é você quem está se curando. Eu disse que iria ajudá-la a se curar, lembra? A prática regular de Chi Kung traz um profundo efeito de fortalecimento para todo o corpo e seus diversos sistemas, nervoso, digestivo, respiratório, esquelético-muscular, hormonal, ginecológico, enfim, todos, até o cósmico.
Sua capacidade de ajudar na cura de uma grande variedade de lesões e doenças crônicas e agudas tem sido objeto de vários programas de pesquisa liderados pelas autoridades médicas chinesas. Mas em termos práticos, estou tocando seus Shinotens e estimulando seu corpo a se curar. O que acha?
- Ele concluiu com um sorriso calmo e de olhos fechados.



- Eu acho impressionante. - admiti, erguendo um pouco a cabeça para ver a fila de corpinhos. Aquilo era estranhamente engraçado

- Isso quer dizer que vamos poder começar logo? - perguntei desviando os olhos dos copinhos e finalmente olhando para Zhao



- Sim, sim. Mas só se você parar de ser teimosa e descansar. Seu corpo precisa de repouso, pelo menos até amanhã. - Ele disse com um olhar sério, mas que logo virou seu costumeiro olhar tranquilo. - Tenho água quente para um banho, e vou cozinhar o jantar antes que escureça. Acho melhor... - Ele disse, dando um peteleco de leve no copo preso, que se soltou com um ruído engraçado e deixou um alívio canforado na pele dela. - Você se preparar para relaxar, ok?


Eu estava tomando uma bronca?! Qual era o caso daquela atitude?! Ele nem era tão mais velho assim!!

Deixei a cabeça cair para trás, voltando a deitar. Bater boca não me ajudaria em nada.

Conforme ele ia passando as instruções, eu começava a notar algo de muito errado.

- E eu faço o que? - relaxar? Eu não tinha ido ali para ser hóspede num spa - Não posso ficar aqui e te deixar fazer tudo!



Zhao suspirou e começou a rir. Era uma risada divertida e animada, contagiante até. Ele olhou para Lygia e disse, ainda em tom divertido:

- Você toma banho, janta, escolhe um quarto para dormir, leva os futons para lá e dorme. Amanhã vamos acordar cedo para treinar. E você ainda não se recuperou.

Ele riu pelo nariz e prosseguiu:

- Você é teimosa, não é? De qualquer forma, se quer mesmo que eu te treine, precisa fazer isto. Do contrário, passaremos mais tempo remendando seus ferimentos do que aprendendo algo. E sim... Eu disse nós dois aprendendo algo. Já estou vendo que você tem bastante a me ensinar também.

Ainda rindo baixinho, Zhao partiu, deixando uma Lygia curada, mas cheia de perguntas para trás



Eu abri e fechei a boca algumas vezes. Mas me senti realmente derrotada naquela briga.

- Teimosa? Já fui chamada de coisas piores... - dei de ombros, indicando rendição. Eu podia sentir a dor se mover do meu tronco para o meu orgulho, mas não era hora para aquilo. Afinal... Além da minha incapacidade de luta, fora meu orgulho quem me deixara naquele estado.

- O que eu poderia te ensinar?! - eu perguntei mais uma vez para o quarto vazio. Me levantei, e incrivelmente, não incomodava mais.

Coloquei apenas a jaqueta por cima dos meus ombros, e já carreguei comigo os futons que ele havia me indicado. Só precisava saber onde os colocaria.

- Ok, você ganhou. Banho... - eu falei alto, procurando Zhao - Para onde eu devo ir?



Zhao apareceu de um cômodo oculto pelas paredes perfeitamente iguais. Junto com ele, vinha um gostoso aroma de algo cozinhando. Ele deu um sorriso e indicou a parte de trás da casa.

- Você vai encontrar um ofuro de madeira e água quente lá. É só encher o ofurô e se divertir. Eu vou terminar o jantar logo.



O cheiro era bom. Era realmente bom. Eu olhei para os lados, e escolhi um canto e deixei os futons longe da porta. Peguei minha mochila e fui até o ofuro.

Olhei para a água quente e para a ofuro e de volta para a água. Como que entendendo a ordem, o líquido pulou de um recipiente para o outro, e o banho estava pronto. Me livrei do resto de minhas roupas, e deixei o corpo mergulhar na água quente.

A temperatura fez algo engraçado com a cânfora em meu tronco, e me deixei sentir aquela sensação por um instante.

Me afundei até o nariz, começando a me preocupar como eu poderia pagar toda aquela boa vontade de Zhao



Após um jantar e a escolha de um quarto, Lygia dormiu. E na manhã seguinte, acordou com uma claridade entrando por uma fresta da janela bem em seus olhos. Ela tentou voltar a dormir, mas se lembrou que tinha que treinar cedo. Então, o que ela decidiria fazer estava baseado em sua próxima escolha.


Resmungando com o sol, eu comecei a me espreguiçar por reflexo, mas parei no meio movimento de repente.

Não havia dor. Voltei a me esticar com cuidado, pouco a pouco. E era a primeira vez que eu conseguia alongar o tronco naquele mês!

Ainda havia o incômodo, lógico. Mas nada que me impedisse de fazer algo.

Me levantei depressa, vestindo a mesma roupa do dia anterior, menos o casaco.

Sai em silêncio do quarto, procurando sinais de vida. O quão cedo era cedo para Zhao?



Logo, Lygia percebeu que cedo para Zhao era bem cedo. Afinal de contas, ela já ouvia pancadas surdas no tronco lá fora. Em cima da mesa de chá havia um café da manhã feito de pães chineses e chá. Nada muito pesado, mas com muita substância.


- E eu fiquei para trás de novo... - falei com os pães, como se eles pudessem sentir pena de mim.

Comi o que for deixado para mim, deixando tudo limpo e dentro da cozinha.

Sai da casa, seguindo o som, encontrando Zhao como que num deja-vu do dia anterior.

- Você dormiu de ontem para hoje? - eu perguntei, sinceramente impressionada.



Zhao terminarou os exércicios na árvore e se voltou para ela, sorrindo tranquilamente.

- Bom dia, Lygia. Sim, eu dormi. E dormi muito bem, obrigado por perguntar. Pronta para começar?



Um sorriso curvou meus lábios de canto por um breve momento.

Finalmente.

- Pronta.



- Certo. - Zhao sorriu e avançou até ela. - Você sente alguma dor ainda? - Ele esperou a resposta dela. Em caso negativo, Zhao então disse:
- Vamos começar com um alongamento. Sem dobrar os joelhos, tente tocar as pontas dos pés com as mãos.



- Dor nenhuma, apenas um pequeno incômodo, mas nada que me atrapalhe de movimentar.

Ok, aquilo era fácil. Eu não era forte, mas flexibilidade e agilidade eram outra história.

Sem dificuldade, eu curvei o corpo, espalmando as mãos no chão.



Lygia sentiu alguma facilidade na tarefa, mas a execução foi um pouco trabalhosa. O machucado tinha tirado um pouco sua flexibilidade, mas mantivera o bastante. Zhao a observou e disse:

- Ótimo, vamos para os braços agora.

Eram exercícios bem simples. Com um pouco de esforço, Lygia estaria nova em folha para se exercitar de verdade.



Sequência após sequência, eu podia sentir meu corpo se soltando.

Sim, incomodava, mas eu podia me mover sem precisar gastar cosmo para isso. Só esse detalhe já deixava todo MUITO menos cansativo.

- E agora? - acho que ele havia alongado até os meus dedos dos pés. Mais um pouco e acho que eu ia começar a crescer ali.



Zhao terminou a sequência de movimentos e então se voltou para a mais nova discípula e disse:

- Vamos treinar. Primeiro, preciso que me mostre seu nível. Tente me acertar um golpe, está bem?

Zhao ergueu ligeiramente os braços, mas sua postura e tranquilidade não se alteraram nem um pouco.



Eu estreitei os olhos. Ele parecia relaxado o suficiente para não ser uma ameaça.

Mas eu sabia que era exatamente com esse tipinho que eu devia me preocupar.

Ergui os braços em resposta. Eu não era uma artista marcial. Mas era uma espiã de Athena. Ao menos aquilo eu poderia fazer.

Avancei rapidamente, mirando na altura dos rins, que eu contava que ele seria capaz de defender.

Meu real objetivo era uma joelhada no lado oposto do quadril dele, para desequilibra-lo.



Zhao aguardou pacientemente a movimentação. Quando Lygia o fez, a finta, embora bem elaborada, não surtiu efeito. Zhao revidou esquivando dois passos para trás, o que a fez ensaiar os golpes no vazio. Ele prosseguiu olhando para ela com seu sorriso tranquilo. Aquilo ficava irritante rápido demais.


Estreitei os olhos de novo. Não fora o suficiente nem mesmo para ele revidar. Mas eu não iria cair naquele jogo de provocação. Aquela era minha especialidade.

Levantei os braços novamente. Direita/esquerda não parecia que ia surtir efeito.

Voltei a avançar, dessa vez uma cotovelada horizontal na altura do rosto, seguido por um chute frontal, daqueles "pé-na-porta"



Zhao simplesmente esperou o avanço de Lygia e esquivou rodopiando para a direita, o que novamente fez os golpes dela passarem no vazio. Ele sorria tranquilo, enquanto esperava que ela se aprumasse para dar outro golpe. Estava novamente parado, esperando por ela, mas ainda imaculado.


Suspirei enquanto voltava a erguer os braços. Ele estava querendo me irritar; estava estampado naquele sorrisinho. Interessante.

Para pegar aquele passarinho, eu ia precisar de paciência. E dos dois pés no chão.

Mais uma vez. Um simples soco reto, seguido de um gancho, mas meu pé dianteiro estava ligeiramente leve, meu peso apoiado na perna traseira.

Para qualquer lado que ele corresse, eu estava pronta para pular junto com ele.



Zhao, desta vez não se esquivou, ele ergueu o braço e bloqueou o golpe dela, desviando-o para a esquerda e descendo seu braço juntamente, para manter o golpe longe. Seu sorriso persistia, mas desta vez, ele parecia curioso com algo. Fosse o que fosse, não aparentava.


Foi minha vez de sorrir. Quando ele empurrou meus braços para baixo, aproveitei o impulso cravando meu pé dianteiro no chão, ao mesmo tempo que explodia a perna de trás, até então tensionada.

Continuei a rotação, trazendo minha perna para uma joelhada no recém aberto tronco dele.



Zhao era frustrantemente bom naquilo. Ao ver o movimento de Lygia, ele bloqueou o joelho dela com a mão espalmada, e enquanto ela golpeava, usou sua perna direita para passar uma rasteira no único pé de apoio de Lygia. Ela sentiu o equilibrio sumir e seu corpo foi ao chão com um baque, enquanto Zhao se afastava novamente. O sorriso dele sumira, mas sua expressão não estava tensa. De fato, ele parecia neutro.


Ai...

Me levantei batendo a poeira do corpo, mas com ligeiro sentimento de vitória; Ele teve que se mexer ao menos um pouco e aquele sorrisinho não estava mais lá.

Inspirei fundo, mais uma vez com finta e golpe. Mas dessa vez, em invés de um terceiro golpe final, eu me preparava para encaixar uma sequência de socos rápidos.

Não ia deixar ele tirar meu equilíbrio como da outra vez



Desta vez, Zhao a interrompeu antes que ela avançasse:

- Já está bom. Já entendi seu nível de combate e qual é o problema que você tem ao combater. Podemos trabalhar nisto.

E simplesmente abaixou a guarda, sem que lygia entendesse.



- Por que eu estou me sentindo ofendida? - eu perguntei, abaixando os braços também.


- Perdão? - Zhao perguntou olhando para ela, sem entender.


Olhei para aquela cara de quem não fazia ideia e suspirei, dando de ombros.

-Nada não. Besteira da minha cabeça. - tirei o cabelo do rosto, pensativa - E então? Eu tenho salvação?



- Não... Por favor diga por que está ofendida? Eu lhe magoei de alguma forma? - Zhao parecia preocupado, e não parecia disposto a avançar as explicações até entender a chateação de Lygia.


Acho que eu estava acostumada demais com Sunao... Precisava colocar um filtro naquela minha boca grande.

- Não, estou ofendida comigo mesma. - eu abanei uma mão - Minha capacidade de luta sem cosmo e desarmada é realmente sofrível. E eu tenho o hábito de falar sozinha... Não precisa ligar para essas coisas.



Zhao se ajoelhou na frente de Lygia e segurou os ombros dela afetuosamente, mas como um pai ou irmão faria. - Ouça, Lygia. É normal se frustrar. Apenas acontece que seu foco é outro. Estamos aqui para melhorar isto, está bem?


- E agora eu parece uma criança. - eu observei, mas minha expressão estava leve

Cobri uma das mãos de Zhao com a minha, dando ligeiros tapinhas ali

- Eu sou mais dura do que pareço ok? Não precisa se preocupar. Você já está fazendo muito por mim. As vezes, eu falo demais. É só deixar para lá.



- Se eu conseguisse deixar para lá meus sentimentos, não seria Santo de Athena, Lygia. - Zhao disse, sério. - De qualquer forma, venha. Vamos melhorar o que você tem. Tem muito potencial aí dentro, é só mostrar.


...

Ele sabia qual era meu grupo, certo? Sentimentos para mim eram mais uma ferramenta de trabalho do que algo que eu pudesse escolher ignorar.

Bom. Não precisava dividir esse tipo de coisa com ele. Apenas assenti em concordância, seguindo-o.



Zhao se ergueu e esperou que Lygia o fizesse também. Então se aproximou dela e disse:

- O que você sentiu durante este treino? Em termos práticos, qual foi sua impressão?



- Você tentou me fazer perder a calma. Mas isso não funcionou. Em compensação, eu não consegui encostar em você. - eu suspirei - Acho que no meu nível atual, sem usar cosmo, talvez até mesmo um bronze me daria um bom trabalho.


- Eu não tentei fazê-la perder a calma. Eu só estava tentando não ser acertado. - Zhao disse. - Vê? Este é o principal problema. Você tende a encarar a luta como parte do seu trabalho. Fazer o oponente perder o controle é eficaz, mas somente contra quem não tem espírito ou força de vontade para aguentar. Este é o principal problema. Você precisa em primeiro lugar, parar de achar que tudo é um jogo de espionagem.

Zhao dizia aquilo sem nenhuma pena ou remorso, mas Lygia entendeu o ponto: De tanto tirar a concentração dos oponentes em batalha, fizera disto parte do seu estilo de combate e algo automático, o que estava a prejudicando quando não era possível iludir ou enganar.



Deixei minha cabeça pender para um lado, em evidente dúvida.

- Eu não trato tudo como um jogo de espionagem. - retruquei talvez um pouco rápido demais.

Sim, eu era desconfiada. E usava de "fumaça e espelho" mais do a maioria dos meus colegas. Mas eu estava viva, não estava?

E minhas costelas se manifestaram, adicionando um "por pouco" em meu raciocínio.

- Partindo da sua hipótese, e como que eu poderia fazer diferente? - eu perguntei, sacudindo aquele calafrio em minhas costelas - Eu nunca consegui atacar de frente.



- Olha, não adianta nada você me responder desta forma. O que você espera que eu faça, Lygia? Concordar com você sobre isto, não mudará o fato de que você não consegue atacar de frente, como disse. Seu caso precisa de reposicionamento de postura. Você precisa acreditar mais em si mesma e parar de ver os combates como coisas pessoais. Depois, trabalharemos na sua técnica. Vamos de novo agora. Tente me acertar.


Essa era nova. Eu já havia sido acusada minhas coisas. Agora, de levar para o lado pessoal era a primeira.

Geralmente, as pessoas reclamavam que eu nunca levava ninguém à sério.

Fiquei olhando ele se posicionar de novo. Eu não ia atacar de frente. Não quando ele especificamente me mandou fazer isso. Seria o mesmo que pedir para beijar o chão de novo.

Ergui os braços, pensando no que fazer. Meu corpo já se preparava para pegá-lo na têmpora, meu cotovelo se abrindo.

No meio do movimento, trinquei os dentes.

Que seja.

Fechei o cotovelo, esticando o braço como numa mola com toda linha velocidade, num soco simples, reto e frontal.



Zhao agarrou o punho de Lygia, fechando os dedos sobre os dela, a centímetros do seu rosto. Ela mesma se surpreendeu quando seu braço estava rígido e firme, como um tronco de árvore. Zhao sorriu, mostrando sua palma da mão. Ela estava vermelha, com a marca dos dedos de Lygia.

- Viu só? Você é rápida e flexível, só precisa acreditar nisto.


Aquilo havia sido uma surpresa.

Eu podia sentir os nós dos meus dedos quentes pelo impacto, mas não doía.

- Você não teria não desviado de propósito, só para mostrar seu ponto, não é? - eu indaguei, desconfiada.



- Você enfeita muito seus golpes. Fintas, nuances, danças. Para um artista marcial treinado, isso é o mesmo que gritar onde você vai bater. Neste simples soco, você só golpeou, o que só me deu chance de me defender. Você ainda é bem mais rápida que um ser humano.

Ele sorriu tranquilo e disse:

- E não, eu não teria "não" desviado de propósito. Se eu fizesse isso, você saberia. Afinal, é especialista em enganar, certo?



...

Esse passarinho estava começando a me irritar.

- Você tem um ponto. - eu deixei por isso mesmo, com humor - Mas ainda não é suficiente. Se você não tivesse apenas bloqueado, eu estaria em maus lençóis.



- Mas já temos um começo. Quer continuar? - Zhao sorriu, e um pequeno pardal pousou em seu ombro, gorjeando.


Eu fiquei olhando o passarinho pousar no ombro do outro passarinho, e não consegui segurar o riso que escapou.

- Mas é claro. - eu pigarreei, voltando à posição de guarda.



Alguns dias se passaram e Lygia sentia o progresso a cada dia que passava. Seus músculos tonificavam e ela ficava cada vez mais confiante. Até um dia, depois da sequência de movimentos, Zhao perguntou à Amazona:

- E então? Você está bem avançada. Tem algo que queira aprender, agora que dominou o básico?



Ouvir Zhao dizer que eu havia dominado o básico era um excelente marco de avanço. Pois o básico dele era praticamente nível de competição nacional. Eu me sentia mais forte, e aquilo por si só já era incrível, considerando o humanamente curto período. Mas nós não éramos exatamente humanos...

Mas eu ainda terminava os dias inacreditavelmente cansada. Minha roupa era apenas um filme colado em meu corpo, de tanto suor. E eu tenho certeza que havia adormecido durante o jantar um dia.

De forma que eu sabia exatamente o que responder àquela pergunta :

- Como acabar com uma luta com apenas um golpe. - eu respondi decidida - Como eu desconfiava, se uma luta se arrastar muito tempo, meu corpo vai desistir antes. E também... Isso ajudaria e muito em momentos de discrição.



- Ah, você quer aprender pontos de pressão e golpes em pontos vitais. - Zhao disse de forma costumeiramente tranquila - É isso?


- Exatamente isso. - eu respondi satisfeita - É possível?


- Claro que é. Mas primeiro... O que você conhece de anatomia?


- Não muito à fundo... - admiti. Eu havia aprendido alguns locais chaves, mas não sei se era o suficiente para Zhao - Os pontos de dor principais acho que sim; rins, costelas flutuantes, têmporas, cartilagens moles do roso... - conforme eu listava, eu tocava levemente em Zhao - E articulações mais frágeis. Acho que isso.


- Hmmm. - ele acompanhava e ouvia. - E que "articulações mais frágeis" seriam?


- Forçar joelhos e cotovelos ao contrário, e calcanhar na parte de cima do pé. - eu parei para pensar - Creio que isso.


- Certo. Quer aprender a golpear esses ou aprender pontos novos?


- O que você achar mais eficiente. - eu me mostrei disposta.


- Vou lhe mostrar um dos movimentos novos e a gente treina aqueles que você conhece. - Zhao pegou o braço de Lygia e indicou a parte interna do pulso, tocando o indicador nela e o polegar no lado oposto. - Se você precisar desarmar alguém, é só virar a sua mão para dentro do seu corpo, assim. - ele exerceu uma leve pressão no pulso de Lygia e ela simplesmente começou a sentir dor. Zhao parou antes que ela se machucasse. - Entendeu?


Ouch.

Aquilo era interessante. Não só desarmar, mas eu seriamente acreditava que poderia quebrar um pulso daquela forma.

Me preparei para repetir o movimento, me atentando para parar ao sentir resistência das juntas de Zhao.



- O movimento tem que ser rápido e ao mesmo tempo brusco. Não pode dar tempo para reação. - ele instruía aguardando o golpe.


- Ok... Isso deixa mais difícil parar na hora certa. - eu observei, segurando o pulso de Zhao. Depois lembrei quem era o dono do pulso - Certo. Acho que eu não vou conseguir te machucar.

E repeti o movimento, rápido e brusco, como ele havia me dito, mas tentando não realmente machucá-lo.



Plac!

O som de estalo seguido da resistência cedendo mostrara que Lygia fora bem sucedida. O pulso destroncara e Zhao fez uma expressão de choque de dor, mas logo sorriu: - Decidida, Lygia. Muito bem.



- MAS COMO?! - eu ainda segurava o pulso dele, com medo de soltar - Por que você deixou chegar nesse ponto?!


- Para que você visse o resultado. E além do mais, se eu forçasse contra, eu mesmo destruiria meu pulso. - Ele sorriu, ainda lívido da dor. - Mas tudo bem. Um pouco de Chi Kung resolve isso.


- Ok... - eu estava me sentindo péssima. Mas por outro lado, havia uma fagulha de vitória dançando em meu mar de remorso.

Ainda segurando o pulso dele, eu fechei meus dedos levemente em torno da articulação, fechando os olhos.

Eu não podia curar. Mas havia um truque que muitos anos de torções, inchaços e machucados em geral haviam me ensinado.

Deixei meu cosmo fluir de forma localizada. Afinal, o corpo humano é 70% água.

Gradualmente, eu comecei a fazer a água naquela parte do corpo de Zhao se aquecer.

- Vamos parar por hoje e cuidar disso, ok?



Zhao olhou para seu pulso e sorriu, tranquilamente. Ele colocou a mão por cima das mãos de Lygia e com um movimento simples, ele colocou o pulso no lugar. Sorrindo, ele disse:

- Decidida, lembra? Você não pode hesitar. Você conseguiu! Não está feliz?

Zhao parecia bem melhor e então ele ergueu os olhos para ela e disse:

- Para alguém com sua determinação, você iria ficar impaciente se nós parássemos. Vamos prosseguir, já estou bem melhor.



Que sensação esquisita!! Deu para sentir os ossos dele voltando para o devido lugar embaixo da minha mão. Com um arrepio, eu o soltei, me levantando também.

- E quem foi que estava brigando comigo por esse tipo de comportamento a uns dias atrás mesmo? - eu ri, mas estava disposta a continuar.

- E eu não sou impaciente. - eu protestei com falso ofendimento, mas não me esforçava para segurar o riso, e já estava pronta para continuar.



- Eu não estou com um ferimento de tiro, só destronquei o pulso. Mas vamos continuar sim.


- Isso foi uma indireta?... - eu perguntei de forma retórica mas fui devidamente ignorada com aquele sorriso inocente. Aquele passarinho me parecia cada vez mais uma raposa, isso sim.


Zhao então passou a instruir Lygia em uma série de movimentos de ataque. A cada movimento, testava os limites da amazona, mostrando a ela onde e como pressionar.


E as semanas se tornaram meses, as folhas começaram a amarelar e se empilhar pelo chão. Os dias se tornavam mais curtos, e novembro estava apenas começando quando a primeira neve começou a se acumular ao redor do nosso local de treino. Até eu podia dizer o quanto já havia melhorado. Eu ainda não podia derrotar Zhao sem utilizar cosmo, mas já conseguia segurá-lo por cinco minutos inteiros, mesmo ele jurando estar lutando a sério.

Eu assistia a primeira neve cair em silêncio, rindo do absurdo de nossos metabolismos, que não pareciam sucumbir ao frio. Distraidamente, enrolava a ponta de meus cabelos entre os dedos. Qual a última vez que eles haviam ficado tão compridos assim?

Girei sob os meus calcanhares, sabendo o que ia encontrar. E lá estava ele, apoiado no portal oposto, com um passarinho empoleirado na cabeça.



- Hora de ir? - Zhao indagou com seu costumeiro sorriso.

- Sim; preciso ir cortar o cabelo. - eu respondi num ar casual, mas nós dois sentíamos o mesmo comichão incomodo em nossas nucas. Algo ia acontecer. E nós precisávamos estar prontos.

Todos nós.
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